Em seu livro, A igreja é maior do que você pensa , publicado pela Missão Horizontes , o missiólogo Patrick Johnstone , buscou descobrir as principais razões pelas quais o interesse por missões é tão pequeno na igreja cristã atual.
Ele identificou quatro razões que explicam as causas desse problema: (a) a lentidão dos primeiros discípulos em compreender o ministério transcultural de Jesus; (b) a falha terminologia bíblica que gera um vazio na própria teologia; (c) a ausência de registros históricos de todas as atividades missionárias, atenuando a importância dos avanços missionários; e (d) a falta da sistematização da teologia bíblica de missão nos credos teológicos. Nas palavras dele,
... pressionar congregações com desafios ou alfinetar a consciência em congressos produz pouco fruto. Até mesmo os livros especializados não resolvem o problema. Minha oração é que, em muitas congregações e escolas teológicas, tanto a teoria quanto a prática de missão possam ser mudadas significativamente.
As quatro razões levantadas por ele:
1. Missão menosprezada na igreja - Na igreja atual a mentalidade ou visão de mundo herdada excluiu missão por completo. Para muitos, hoje, missão significa um pouco mais que o evangelismo local e trabalho geral da igreja no mundo, para aliviar os males sociais. Mas o componente de evangelização mundial e envio de missionários são quase que ignorados.
2. Missão despercebida na interpretação das Escrituras - Essas três passagens bíblicas: Gênesis 12.3, Salmo 22 e Lucas 4.20-22 demonstram bem como ainda temos dificuldade para perceber missão nas Escrituras. Na primeira passagem, Gênesis 12.3, a última parte do versículo é uma poderosa expressão da missão de Deus '... em ti serão benditas todas as famílias da terra', mas muitos nunca atentaram para isso. Já em Salmo 22, vê-se uma monumental poesia sobre a hora da crucificação e ressurreição de Jesus com detalhes impressionantes do fato. E mais, o versículo 27 é outro texto-áureo de missões muito pouco notado e pregado quando se utiliza esse salmo em nossas igrejas. 'Todos os limites da terra se lembrarão, e se converterão ao SENHOR; e todas as famílias das nações adorarão perante a tua face'. Aqui se vê que a cruz e a evangelização mundial se mesclam. Salvação e missão não podem ser divorciadas. E, finalmente, em Lucas 4 fica provado que sempre existiu certa dificuldade de compreensão das Escrituras. Nela, o evangelista narra o momento quando Jesus, tomando o livro de Isaías (cap. 61) leu se referindo a ele mesmo. Num primeiro momento, os ouvintes se maravilharam (v. 22), mas logo se encheram de ira e quiseram matá-lo (v. 28). O que motivou tamanha mudança e humor nos presentes? Porque a natureza missiológica de Jesus não foi compreendida por eles! Os judeus conheciam bem a passagem de Isaías 61, e esperavam que Jesus lesse a frase do verso 2: "... e o dia da vingança do nosso Deus; a consolar todos os tristes...", mas Ele omitiu essas palavras encerrando a leitura. Eles esperavam que Jesus fosse vingá-los da ocupação gentia (romana), mas Jesus quis demonstrar que seu ministério não era de vingança contra os gentios, mas de salvação, por isso ficaram irados com Ele. E isso também pode ser verificado na pergunta dos dois discípulos no caminho de Emaús: 'E nós esperávamos que fosse Ele o que remisse Israel...' (Lc 24.21).
3. Missão despercebida na história da igreja - Porque para muitas igrejas, as últimas palavras de Jesus referente à Grande Comissão (Mt 28.19) parecem nunca terem sido pronunciadas? A Grande Comissão tornou-se a Grande Omissão, e além das razões anteriormente citadas, uma terceira falha que afetou a compreensão dos cristãos atuais sobre a missão e missões é a negligência dos historiadores da igreja em não dar relevância aos, embora poucos, mas importantes eventos missionários. Alguns dos maiores movimentos missionários da história foram pouco publicados nos livros de História da Igreja, que se detém mais em falar sobre discussões teológicas estruturas eclesiais.
Sobre esta terceira razão, talvez uma possível justificativa, que só reforça ainda mais o problema, seja que os escassos movimentos missionários da época eram tão menosprezados e seus missionários tão isolados que mesmo os mais interessados não tinham registros de suas atividades para que pudessem relatá-las em suas obras biográficas sobre a Igreja. Apesar de tudo isso, esses heróis anônimos da fé, motivados pelo Espírito Santo, mantiveram o propósito da evangelização mundial, a despeito da negligência da maioria. E escreveram uma história maravilhosa que, felizmente, conheceremos seus resultados na eternidade.
É esta a quarta razão apresentada por Patrick Johnstone, que explica o porquê de missão ser tão menosprezada e mal compreendida pelas igrejas. Nos deteremos especialmente nela por estar mais dentro da pauta desta edição.
A pesquisa realizada pelos estudiosos Barret e Johnson, publicados no livro What in the World is God Doing, revelaram que tanto no desenvolvimento da teologia com seus credos quanto das próprias traduções e versões bíblicas, muitos termos-chaves, para uma melhor compreensão de missões na Bíblia e na teologia, foram omitidos ou modificados por outras expressões que, infelizmente, dificultaram uma melhor divulgação do tema.
A diversidade do vocabulário (missiológico) e o número de referências são uma prova convincente de que os versículos da Grande Comissão são centrais para uma compreensão correta da totalidade do Novo Testamento.
Outro problema relevante nessa discussão, levantado por Patrick Johnstone, é o verdadeiro sentido etimológico das palavras apóstolo e missionário. Se tomarmos o sentido original da palavra bíblica apóstolo (do grego apostello), que significa "o enviado" ou "eu remeto, eu lanço", perceberemos que a mesma correspondente à palavra missionário (do latim missio). As duas têm exatamente o mesmo significado. Ou, ainda, quando aparece a palavra apóstolo na Bíblia, os tradutores, contextualizando, poderiam ter optado por missionário. Em outras palavras, o missionário de hoje poderia, neste sentido, ser legitimamente chamado de apóstolo, e missões poderia ser comumente chamada de apostolado ou obra apostólica, e vice-versa.
Veja que lindo ficaria 1Coríntios 12.28: "E a uns pôs Deus na igreja, primeiramente MISSIONÁRIOS (apóstolos), em segundo lugar profetas, em terceiro doutores...". Se ao longo da história cristã o termo apóstolo tivesse tido seu verdadeiro sentido amplamente discutido e divulgado, essa indiferença e também a rejeição à obra missionária não existiriam na igreja hoje.
Segundo Patrick, o missionário é o primeiro (no tempo) que o Senhor envia para fundar igrejas. Os outros ministérios são uma conseqüência dessa atividade.
Sou missionário há mais de 30 anos e dou muitas palestras, mas se eu me colocasse no púlpito e dissesse 'Sou um apóstolo', a maioria das pessoas acharia que eu não teria o direito de fazer tal afirmação, pois não há mais apóstolos; ou que eu seria o líder de alguma seita herética!
Hoje, infelizmente, a maioria dos ministérios da igreja, inclusive aqueles que não possuem fundo histórico bíblico, sente-se infinitamente superior ao apostolado, ou seja, à obra missionária. E, como resultado desta confusão terminológica, muitos obreiros estão vivendo no limbo, abandonados por suas igrejas no campo missionário. Talvez, o próprio missionário Paulo estivesse se sentido abandonado pela igreja local quando pediu ajuda: "Portanto, não te envergonhes do testemunho de nosso SENHOR, nem de mim [...] fui constituído pregador, e apóstolo [missionário], e doutor dos gentios. Por cuja causa padeço também isto...". (2Tm 1.8-13; grifo do autor) E ainda: "Só Lucas está comigo. Toma Marcos, e traze-o contigo, porque me é muito útil para o ministério" (2Tm 4.1; grifo do autor).
Citando Barret e Johnson, o autor ainda apresenta, organizadamente, uma extraordinária coleção de termos e várias palavras e frases-chave referentes à evangelização mundial e seu emprego nas traduções utilizadas na Bíblia que, se recuperadas têm uma força poderosa na formação de nossos obreiros:
A Grande Comissão pode ser resumida em um verbo-chave grego: evangelizar (euangelizo). Essa palavra é usada 56 vezes no Novo Testamento. Além disso, há 10 variantes próximas baseadas no verbo-raiz angello. Há mais quatro sinônimos próximos e mais 19 quase-sinônimos, todos eles expressando aspectos do mesmo conceito, assim como, mais 500 palavras cognatas próximas (nomes etc.). A tarefa de evangelizar é detalhada pelo Senhor Jesus Cristo em sete mandamentos, que são imperativos e constituem a Grande Comissão. São eles: Recebei!, Ide!, Testemunhai!, Proclamai!, Discípulai!, Batizai!, Treinai!
Todas essas palavras gregas são traduzidas em 596 termos, listados no livro mencionado anteriormente, como ampliações dos sete mandamentos. Portanto, o Novo Testamento é saturado com toda uma gama de palavras que se referem à evangelização mundial e local.
E, para nossa surpresa, embora a palavra evangelizar seja usada normalmente na forma grega, ela não aparece na maioria das traduções, como é o caso da versão King James. Apesar de ela ser substituída por outras palavras correlatas, estas, no entanto, não possuem a mesma força do termo original. Isso refletiu, ao longo da história, diretamente na construção teológica e eclesiástica da história da igreja, atenuando a doutrina bíblica de missões.
Dentro desta quarta razão apresentada por Patrick, este ponto, talvez, seja o mais curioso e surpreendente. Segundo ele, além de todas as razões anteriormente citadas, essa deficiência missiológica foi a que mais dificultou a construção de uma teologia cristã que valorizasse missões para um melhor entendimento da igreja.
Ele demonstra muito bem isso quando comenta as declarações doutrinárias dos credos e demais obras teológicas (pastoral e sistemática) de importantes teólogos.
Se por um lado eles foram tão importantes na conservação das demais doutrinas cristãs, tais como, Trindade, divindade do Senhor Jesus, personalidade do Espírito Santo etc, por outro, a maioria deles, surpreendentemente, omite qualquer referência sobre a tarefa transcultural e a natureza evangelística da igreja.
Esse problema documental perpetuou ainda mais a frágil e quase extinta noção de missões numa igreja cuja história está cheia de trágicos eventos. O reflexo disso pode ser visto claramente nos cursos teológicos e no dia-a-dia da igreja atual.
Basta você, leitor, estudar cada credo doutrinário da história cristã, exemplo: o Credo dos Apóstolos, o Credo de Cesaréia, o Credo de Nicéia, o Credo Niceno e o Credo Atanasiano, para perceber claramente a questão em pauta.
A tese defendida pelo autor é que, assim como eles foram fundamentais para assegurar a nossa profissão de fé nas demais doutrinas frente às heresias dos primeiros séculos, deveriam também ter dogmatizado também a doutrina bíblica de missão e a natureza missiológica do evangelho. Se isso tivesse ocorrido, com certeza, hoje, não haveria tanta desconfiança em crermos e praticarmos missões como uma doutrina bíblica autêntica.
A motivação do Credo dos Apóstolos não foi a evangelização mundial, mas o combate ao erro do Marcionismo. É trágico que a maior formulação da teologia cristã , que é freqüentemente a mais lida e estudada nas igrejas ao redor do mundo, não tenha uma única palavra sobre a Igreja e sua responsabilidade com o mundo perdido!
Mais recentemente, por ocasião da reforma, encontramos Lutero e Calvino resgatando e desenvolvendo a verdadeira fé bíblica cristã e, embora tenham construído uma boa base para missiologia, também não foi essa a preocupação deles nem do demais reformadores. Como é bem notado pelo autor, é impressionante que o resgate da Bíblia pela reforma não resultou num resgate imediato por missões mundiais.
Muitos dos teólogos sucessores foram ativamente hostis a qualquer pensamento de que missão era a responsabilidade da igreja. As grandes afirmações da Fé Reformada, a Confissão Belga ou o Catecismo de Heidelberg no continente europeu, a Confissão Inglesa de Westminster ou os Trinta e Nove Artigos Anglicanos omitem-se quanto ao assunto. Poucos teólogos luteranos e reformadores da Holanda, Grã-Bretanha e Alemanha procuraram investir contra a onda teológica, mas pouco resultado prático foi manifestado no envio real de missionários. O trabalho de missão foi conduzido por anabatistas, pietistas e morávios nos dois séculos seguintes, e foi ignorado pelos teólogos da época.
É bem verdade que há razões que explicam esse comportamento. Mas em vista do prejuízo espiritual que isso trouxe para a evangelização mundial, nenhuma delas justifica tamanha negligência. Nesse contexto de inércia missionária, apenas alguns grupo de estigmatizados, como os anabatistas , procuravam manter a chama acesa, com o riso de serem perseguido e marginalizado. Mas a Grande Comissão tornou-se, para eles, o seu propósito de vida, e a eles devemos uma menção honrosa póstuma.
Após esse período, o problema ainda continuou com outros teólogos de grande expressão. E um exemplo citado por Patrick é a obra de Teologia Sistemática de A. H. Strong. Escrita há mais de cem anos, essa obra clássica da teologia evangélica, com mais de mil páginas, discorre brilhantemente sobre todas as doutrinas de fé, mas missão mundial e a Grande Comissão de Mateus 28.19, é citada apenas uma vez, e mesmo assim sem a idéia objetiva de evangelização transcultural.
Poucos grandes teólogos fizeram melhor. Seria um estudo interessante avaliar a cobertura da Grande Comissão e da missiologia em todos os trabalhos similares feito pelos principais teólogos. Acredito que os resultados revelariam exceções, mas na maioria, a ausência seria simplesmente evidente, e o meu argumento, confirmado.
E é justamente isso que acontece com as demais obras de teologia sistemática e pastoral estudadas em nossos seminários. É obvio que esse quadro só poderia gerar pastores e líderes sem compromisso com missões. A pesquisa realizada pelo ICP, e publicada nesta edição (p. 46), demonstra bem isso. Missiologia é apenas uma matéria a mais do currículo, muito pouco enfatizada.
O missionário e teólogo luterano James Scherer percebeu isso nos seminários dos EUA, onde foi professor por muitos anos, país historicamente com grande atuação missionária:
Sempre me vinha à mente que o ensino de missões não tinha um lugar definido ou adequado no currículo teológico dos principais seminários. Essa falta de importância contrasta significativamente com a posição central de missão no Novo Testamento e nos primórdios da igreja [...] Assuntos como evangelismo, conversão, crescimento da igreja, testemunho a pessoas de outros credos e missão em unidade parecem totalmente estranhos aos alunos.
Este assunto exigiria muito mais espaço para um debate amplo e profundo sobre cada uma das particularidades envolvidas nesta questão. Esperamos que esta provocação, lançada por Patrick, e aqui parcialmente reproduzida, inspire grupos de discussão que levem este debate às conferências, aos congressos de missões, às salas de aula de cada seminário e aos estudos das igrejas.
Repetindo as palavras de Patrick Johnstone, que dizem: "...não quero aqui construir uma nova teologia baseada apenas nessas poucas afirmações", entendo, porém, que alguma coisa precisa mudar! O alvo precisa ser corrigido.
Sem sombra de dúvida, nossa obediência pode apressar a sua volta! Maranata!
1 Título em inglês: The church is bigger than you think, de Patrick Johnstone.
2 A Missão Horizontes está sediada em Monte Verde, Camanducaia (MG). É uma das mais dinâmicas agências missionárias brasileiras. Conheça um pouco mais deste ministério no site www.mhorizontes.org.br
3 Patrick Johnstone é ainda o autor do best seller Intercessão Mundial, considerado o melhor e mais atualizado manual de oração e informações sobre missões.
4 Ibid., p. 36, adaptado.
5 O autor dá significados diferentes para as palavras missão e missões. Sendo que missão é o plano global de Deus para a redenção da espécie humana (Rm 8.18-25) e missões as diferentes iniciativas e estratégias humanas para promover a missão de Deus.
6 Ibid., p. 37, adaptado.
7 Ibid., p. 41, adaptado.
8 Ibid., p.57
9 Ibid., p. 50.
10 Ibid., p. 54.
11 Veja em nosso site www.icp.com.br tabela em completa desses termos.
12 Ibid., p. 52.
13 Veja em nosso site www.icp.com.br a transcrição completa de todas essas declarações doutrinárias históricas.
14 Ibid., p. 59.
15 Ibid., p. 60.
16 Anabatistas - Movimento discidente da igreja oficial no século 16. Foram assim chamados por não concordarem, entre outras coisas, com a doutrina do batismo infatil e por rebatizarem seus novos convertidos. Sua história, pouco contada, é um relato comovente de missões e de como eram ardentes proclamadores do evangelho. Foram perseguidos pela igreja romana e pelos reformadores.
17 Ibid., p. 64.
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