"... Vem mesmo a hora em que qualquer que vos matar cuidará fazer um serviço a Deus" (Jo 16.2)
A primeira coisa a dizer sobre o assunto é o seguinte: qualquer violência, de qualquer espécie, que tenha acontecido na história sob a bandeira do cristianismo não passa de uma distorção desse mesmo cristianismo. Isso porque o cristianismo nasceu do ensino de Cristo e de seus discípulos e apóstolos, e seus escritos são a única fonte autorizada da doutrina cristã. E tudo aquilo que não está de acordo com ela não pertence a ela, definitivamente!
A Guerra dos Trinta Anos, que varreu a Europa de 1618 a 1648, e o atual conflito entre as Irlandas do Norte e do Sul, são embates de natureza política, cujos grupos antagônicos se identificaram com determinado ramo do cristianismo. Os conflitos por lá existem sim, mas não por causa do evangelho, e muito menos por conseqüência dele.
As guerras e as revoluções são efetivadas como resultado de uma busca pelo poder e riqueza. Os povos, ou mesmo os governantes envolvidos nesses conflitos, apresentam uma cultura particular, muitas vezes uma cultura cristã, seja ela católica, protestante ou outra. Cultura cristã, todavia, não é sinônimo de cristianismo, e muito menos de doutrina cristã. Agressões podem ter sido feitas em nome do cristianismo, mas nunca com sua aprovação. Não negamos que atos reprováveis desta natureza tenham acontecido no passado ou aconteçam no presente tempo. O que queremos esclarecer é que estes atos não têm o mínimo apoio das Escrituras.
"Ouvistes que foi dito: Olho por olho, e dente por dente. Eu, porém, vos digo que não resistais ao mal; mas, se qualquer te bater na face direita, oferece-lhe também a outra; e, ao que quiser pleitear contigo, e tirar-te a túnica, larga-lhe também a capa; e, se qualquer te obrigar a caminhar uma milha, vai com ele duas. Dá a quem te pedir, e não te desvies daquele que quiser que lhe emprestes. Ouvistes que foi dito: Amarás o teu próximo, e odiarás o teu inimigo. Eu, porém, vos digo: Amai a vossos inimigos, bendizei os que vos maldizem, fazei bem aos que vos odeiam, e orai pelos que vos maltratam e vos perseguem..." (Mt 5.38-45).
Matar, ferir, agredir, prender, coagir em nome da fé cristã é uma negação desta mesma fé cristã. Nenhum cristão, em obediência à Palavra de Deus, está autorizado ou motivado a cometer ações extremas em nome de Cristo. Se um soldado cristão já o fez, fê-lo em nome de seu país, justa ou injustamente, mas não por ser um cristão.
Na verdade, nem mesmo as agressões aos cristãos nos países de maioria não-cristã justificam uma reação agressiva por parte da Igreja, quer seja provocada pela manifestação popular, que seja pela ação estatal. O espírito pacifista do cristianismo foi um ingrediente poderoso para a promoção da conversão do Império Romano. A paciência e resignação dos mártires diante de seus algozes convenceram a população do Império quanto à superioridade da mensagem cristã. Os cristãos primitivos estavam prontos a morrer por sua fé, mas nunca a matar por causa dela.
"Porque, sendo livre para com todos, fiz-me servo de todos para ganhar ainda mais. E fiz-me como judeu para os judeus, para ganhar os judeus; para os que estão debaixo da lei, como se estivesse debaixo da lei, para ganhar os que estão debaixo da lei. Para os que estão sem lei, como se estivesse sem lei (não estando sem lei para com Deus, mas debaixo da lei de Cristo), para ganhar os que estão sem lei. Fiz-me como fraco para os fracos, para ganhar os fracos. Fiz-me tudo para todos, para por todos os meios chegar a salvar alguns" (1Co 9.19-22).
Esta é a forma bíblica de expansão do evangelho. Nada de agressões verbais ou físicas. Nada de imposições ou obrigações estabelecidas, seja pelo Estado, seja por alguma instituição sujeita ao governo. Pregar e ensinar foram o método estabelecido por Jesus para divulgar sua mensagem ao mundo e foi justamente dessa forma que seus discípulos procederam. Se pessoas mudariam sua fé, elas o fariam por meio da persuasão dos pregadores e não pela coação.
O cristianismo nasceu ancorado somente no poder da Palavra divina. Não dispunha de poder político, econômico ou militar. E, em seus escritos, jamais considerou esses elementos necessários para cumprir sua missão. Só veio apropriar-se desses meios mais de três séculos após sua existência, mas, mesmo assim, somente uma pequena parcela de seus seguidores lançou mão deles. O cristianismo continuou se expandido. E, se no período colonial cresceu ancorado em ações estatais, a fé cristã, no entanto, não deixou de se espalhar, mesmo depois de haver perdido esse apoio. Na verdade, passou a manifestar seu verdadeiro caráter: persuadir os homens à fé por meio da pregação inspirada pelo Espírito Santo de Deus.
"Porque as armas da nossa milícia não são carnais..." (2Co 10.4), diria o apóstolo. O combate pelo evangelho, tantas vezes mencionado (Ef 6.12; Fl 1.27,30; Cl 1.29), era apenas uma analogia, uma comparação. Em nenhum momento, a espada foi colocada como meio de propagação da Palavra de Deus. "Embainha a tua espada; porque todos os que lançarem mão da espada, à espada morrerão", disse Jesus (Mt 26.52).
As atuais dimensões da fé evangélica no mundo, principalmente no hemisfério Sul, são fruto do movimento missionário do século 19. Em poucas vezes, houve a imposição das forças imperialistas. Em sua maior parte, dependeu da dedicação de homens consagrados à tarefa de ganhar almas e dos avivamentos decorrentes de seu trabalho.
Em sua busca de evangelizar o mundo, o "fator indivíduo", não o "fator país", predomina no que diz respeito à visão de expansão da fé bíblica. A idéia de ganhar os governantes para converter a nação não é corrente. Cada indivíduo de cada nação precisa ser levado a uma decisão por Cristo. Esse é o fundamento das Escrituras, que mostram a mensagem de salvação não como algo destinado a ser cultura de um povo específico, mas como experiência particular de cada pessoa.
Ninguém se apóie em extremismos cristãos ocorridos na história e em atuais conflitos bélicos justificados pela religião para condenar o cristianismo. Os grupos ateístas e secularistas modernos gostam de atribuir à religião a culpa exclusiva pelos embates bélicos mundiais. Deduzem que se não houvesse ideologias religiosas, haveria paz.
Todavia, isto não é verdade. Qualquer extremismo é nocivo, seja ele religioso ou não. A intolerância, e não a convicção de qualquer espécie, atua como um motor por trás da agressão e do terrorismo. Qualquer ideologia, por mais passiva e neutra que seja, pode se tornar fonte de conflitos quando levada a extremos. A história é testemunha disso.
Entre os exemplos mais próximos, temos o nazismo e o comunismo. Estes não têm base religiosa, ao menos declaradamente. Entretanto, apoiados em pressupostos raciais ou filosóficos, produziram uma infinidade de mortos e um sem número de guerras em todo o mundo. Segundo O livro negro do comunismo, lançado pela editora Bertrand Brasil, o comunismo produziu entre 85 e 100 milhões de mortos, geralmente por se oporem à revolução, ou como tática política para efetivação da mesma.1
Logo, conflitos não são exclusividade da religião.
1 O livro negro do comunismo, Courtois, Werth, Panné, Paczkowski, Burtosek e Margolin, Bertrand Brasil.
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