Por Vincent Cheung
Presidente da Reformation Ministries International (Ministério Reformado Internacional). Autor de mais de vinte livros e centenas de palestras sobre teologia, filosofia, apologética e espiritualidade.
Tradução: Felipe Sabino de Araújo Neto
João explica o propósito do seu evangelho da seguinte forma: "Mas estes foram escritos para que vocês creiam que Jesus é o Cristo, o Filho de Deus, e, crendo, tenham vida em seu nome" (Jo 20.31). Diz isso apenas no final do seu evangelho, embora a doutrina seja repetidamente afirmada e ilustrada em todo o seu texto. Pode ser que ele estivesse querendo nos guiar a essa conclusão, ou, quem sabe, que alcançássemos essa conclusão com ele, à medida que apresenta episódios da vida e dos ensinos de Jesus Cristo.
Em todo caso, a proposição central que João promove no seu evangelho é que "Jesus é o Cristo, o Filho de Deus". E promove a proposição, porque, é crendo nisso, que os homens "terão vida em seu nome". Dessa forma, sabemos que esse evangelho é sobre Jesus Cristo, e Jesus Cristo era a encarnação do Filho de Deus. Isto é, Deus tomou sobre si a natureza humana e viveu sobre a terra durante um tempo. Ele era o Deus homem.
Contudo, João começa seu evangelho sem nenhuma menção ao Deus homem. Ele não torna a encarnação explícita até chegar à referência 1.14. Alguém poderia argumentar que isso é sugerido nos versículos anteriores, mas eles apenas indicam que "a Palavra" estava no mundo, e não que ela tornou-se carne. A idéia de que os primeiros versículos poderiam se referir à encarnação deve ser imposta sobre eles somente após o entendimento dos últimos versículos. E João não chama o Filho de Deus encarnado de Jesus Cristo até a referência 1.17. Antes, ele começa com várias declarações definidas e precisas sobre "a Palavra" sem qualquer consideração à encarnação ou ao nome de Jesus.
João não introduz, imediatamente, Jesus Cristo como seu assunto, pois, primeiro, investiga a história dessa pessoa desde um tempo antes da encarnação, declarando que ele já existia. E, de fato, ele retrocede na história de Cristo a um ponto antes da própria criação, declarando que Ele já existia mesmo nesse ponto, que Ele não era uma criatura, mas, sim, aquele que fez todas as coisas. Que aquele que ele chama de "a Palavra" não tomou sobre si uma natureza humana até que chegasse o tempo designado por Deus. Como Paulo escreve: "Mas, quando chegou a plenitude do tempo, Deus enviou seu Filho, nascido de mulher, nascido debaixo da lei" (Gl 4.4). Embora tenha nascido como uma pessoa humana naquele tempo, Ele existia como a Palavra mesmo antes do tempo.
Isso não questiona a encarnação. Em verdade, a doutrina é enfatizada e explicada. Essa abordagem enfatiza a doutrina, porque a encarnação perderia todo o seu significado se fosse o nascimento de uma pessoa humana comum que veio à existência na concepção. De fato, essa não seria, de forma alguma, uma encarnação especial. Mas, João destaca a encarnação. E faz isso chamando atenção à condição pré-encarnada da Palavra. Então, essa abordagem explica a encarnação porque nos diz o que foi encarnado, e quem veio ao mundo. A natureza divina é considerada como sua antes de a encarnação ser mencionada. Dessa forma, João, ao começar seu evangelho com a identidade e atividade da Palavra antes da encarnação, esclarece para nós a natureza de Cristo, que nele havia a natureza divina, que se tornou carne, de modo que havia também nele a natureza humana.
Talvez, por causa do seu zelo em exaltar a necessidade e a realidade da encarnação, algumas pessoas alegam muito mais para ela do que têm garantia bíblica para fazê-lo. É comum entre alguns crentes afirmar que o Filho de Deus não pode ser considerado à parte da encarnação, e há mesmo a afirmação de que Deus não pode ser entendido sem a revelação pessoal do Filho de Deus no estado encarnado. Aqueles que pensam dessa forma poderiam se congratular por dar tanta honra a Cristo como o Deus homem, mas eles estão errados. João está fazendo aqui o que eles dizem que não pode e não deve ser feito. Ele fala sobre "a Palavra" inteiramente à parte da encarnação.
É errado dizer que não poderíamos conhecer como Deus era realmente até que o Filho de Deus se tornou carne e nos mostrou como Deus era por suas palavras e ações. E isso devido ao fato de que tal doutrina equivale a uma negação de todo o Antigo Testamento. É também errado supor que Jesus veio para nos mostrar algumas das dimensões principais do caráter de Deus que não tinham sido claramente reveladas antes, tais como, seu amor e perdão. E isso porque o Antigo Testamento explicita e, repetidamente, refere-se ao amor e perdão de Deus, e outros atributos que o ignorante considera ser peculiar à revelação de Jesus Cristo.
Além do mais, seria errôneo sugerir que Cristo veio para nos mostrar um caminho de salvação anteriormente desconhecido. O evangelho tem sido pregado à humanidade desde o princípio, quase imediatamente após os nossos primeiros pais caírem no pecado. E, então, as idéias de expiação, fé e arrependimento tinham sido declaradas ao longo dos séculos pelos profetas. Jesus Cristo veio para cumprir esses ensinos, já revelados há muito tempo no Antigo Testamento.
Algumas doutrinas do Antigo Testamento sugerem ou se referem à encarnação como predições, mas meu ponto de vista é que foram reveladas antes da Palavra encarnada vir em carne para nos falar sobre essas doutrinas. Elas foram reveladas por inspiração do Espírito aos profetas, declaradas por eles, e entendidas por seus ouvintes, "antes de" e "à parte da" encarnação da Palavra. Mesmo agora, é possível discutir Deus, até o Filho de Deus, sem qualquer pensamento da encarnação, como João mesmo o faz no começo do seu evangelho. É, de fato, possível conhecer e discutir a natureza de Deus inteiramente à parte da encarnação. O mesmo se aplica ao Espírito Santo - o Antigo Testamento nos dá ensinos sobre Ele que são perfeitamente inteligíveis, embora tenham sido dados antes da encarnação.
Repetindo, isso não é desvalorizar a encarnação, mas, sim, corrigir uma piedade desorientada e uma afirmação exagerada em relação à encarnação. É errado exaltar a Palavra encarnada deixando implícito que a porção mais antiga da Escritura era quase inteiramente inútil. Outro ponto a considerar é que, se a Palavra é a revelação de Deus, a imagem expressa do Pai, o embaixador intelectual divino da Deidade, então o Antigo Testamento é sua revelação, tanto quanto a Palavra encarnada ou as palavras do Novo Testamento. Ele vinha se revelando - clara, precisa e significativamente - desde o princípio. Dessa forma, ao honrar a revelação trazida a nós pela Palavra encarnada, devemos tomar cuidado para não insultar ou negar a revelação trazida a nós pela Palavra pré-encarnada.
À parte de qualquer relação com a encarnação, a Palavra "era Deus" e "estava com Deus". A Palavra "era Deus" refere-se à divindade da Palavra. Foi essa "Palavra" que se fez carne, que tomou uma natureza humana, e o Deus homem foi chamado Jesus, que era o Cristo. A divindade da Palavra não foi afetada nem misturada com a humanidade que tomou; contudo, as duas naturezas passaram a estar em união permanente, de forma que seria impreciso referir-se a Jesus Cristo como Deus ou como homem, ou como Deus e homem.
A Palavra "era Deus". Mas João adiciona que a Palavra estava "com Deus". Isso mostra que é possível fazer uma distinção entre a Palavra e alguém chamado "Deus" neste contexto. A doutrina da Trindade é sugerida aqui. Embora João 1.1 não mencione o Espírito Santo, há passagens na Bíblia que ensinam o que lemos com respeito à Palavra - que o Espírito Santo é Deus, ou divindade, e que Ele pode ser distinguido do Pai e do Filho. Quando os membros da Deidade são distinguidos, então a expressão Deus geralmente refere-se ao Pai; de outra forma, denotaria a Deidade inteira, ou a Trindade. Assim, nosso versículo diz que Jesus era Deus, pelo fato de ser Divindade, e que estava com Deus, pelo fato de ser distinguível de Deus - o Pai.
Essa informação serve para indicar "o quê" ou "quem" veio ao mundo, e que foi encarnado. A resposta de João é que foi a Palavra, ou Deus - o Filho, que tomou uma natureza humana e viveu entre os homens na pessoa de Jesus Cristo. Por todo o evangelho, Jesus diz ter sido enviado pelo Pai, que está ensinando as palavras do Pai e fazendo a sua obra. Isso seria ininteligível se não houvesse nenhuma distinção entre Jesus e o Pai, embora Jesus alegue ser Deus mesmo. A Trindade faz perfeito sentido para isso. João 1.1 nos prepara para ela, e observa que essa relação existia antes da encarnação, e que não foi um efeito da encarnação.
A fé cristã afirma que há um Deus, e que Deus é um. A objeção contra a doutrina da Trindade é que ela contradiz o monoteísmo. Os cristãos, freqüentemente, admitem que há uma contradição aparente, mas alguns parecem curiosamente felizes com isso. Mas, a idéia de uma contradição "aparente" é subjetiva, de forma que é inútil, exceto para expor a condição confusa e a incompetência daquele a quem tal contradição é aparente. Ou existe uma contradição, ou não existe qualquer contradição. Se uma pessoa vê uma contradição lógica onde não existe qualquer contradição, isso não nos diz nada sobre a questão em debate, mas nos diz que a pessoa é logicamente delirante. Se a fé cristã se contradiz por sua doutrina da Trindade, então a doutrina não pode ser verdadeira. Mas, se não existe qualquer contradição, então não deveria haver nem mesmo uma aparente. Contrário ao comportamento cristão comum, perceber uma contradição aparente não é algo do que se orgulhar, se queremos dizer que a pessoa percebe uma contradição onde não existe nenhuma.
Uma explicação padrão, oferecida àqueles que sofrem sob o delírio lógico de que a doutrina contradiz o monoteísmo, é bem-sucedida. O princípio básico é observar que uma contradição ocorre somente quando alguém afirma que algo é "A" e "não A" ao mesmo tempo e no mesmo sentido. A doutrina da Trindade é que Deus é um, em certo sentido, e três, em outro sentido. Isso sozinho é suficiente para evitar qualquer contradição, mesmo que não saibamos mais nada sobre a Trindade, tal como a natureza precisa da união e a relação entre os membros da Deidade. Enquanto Deus não for um e três no mesmo sentido, não existe qualquer contradição.
Pensemos sobre isso de outra forma. Até onde posso lembrar, quando aprendi sobre a doutrina da Trindade, sendo ainda uma criança, não me ocorreu que alguém poderia considerá-la uma contradição. Mesmo se eu estivesse ciente do suposto problema, ele não me impressionaria. De fato, a primeira vez em que me tornei realmente ciente do "problema" foi quando era um adolescente, ao ler a resposta de um cristão à suposta "aparente contradição".
Mas, qual o motivo disso? Não era porque eu precisava entender a idéia de que havia uma contradição. Mesmo sendo criança, eu sabia que as várias religiões se contradiziam umas às outras, que o Deus cristão não era como Buda, ou qualquer outra divindade ou figura não-cristã - essas coisas eram muito claras para mim. Eu entendia o politeísmo, que ele contradiz o monoteísmo, e nunca pensei que a Trindade fosse algo como o politeísmo. Assim, eu entendia a idéia de uma contradição, e poderia distinguir as religiões que se contradiziam umas às outras. Mas, eu não via qualquer contradição, quer aparente ou real, na doutrina da Trindade.
Em verdade, eu não via qualquer contradição, porque a Trindade era o único Deus que a Escritura cristã me introduziu desde o princípio. O Deus cristão nunca foi introduzido a mim como uma anti-Trindade. Para dizer de outra forma, nunca aceitei as definições pagãs sobre Deus como fundamentais. Então, evolui dessas para o conceito cristão de Deus. Nunca precisei fazer a Trindade consistente com a idéia não-cristã da unicidade de Deus. Para mim, o Deus cristão sempre tinha sido uma Trindade.
Se tomarmos um "deus" como definido pelos pagãos e multiplicarmos esse deus, então teríamos muitos deuses, ou o politeísmo. Mas, se considerarmos a revelação cristã em seus próprios termos, ao invés de compará-la ou acomodá-la à definição pagã, então veríamos que a Escritura não define a unicidade de Deus de uma forma aqui e de outra, ali. Ela ensina que existe um Deus, e somente um Deus: o Pai, o Filho e o Espírito Santo. Isso é o que Deus significa. O que estamos dizendo, então, quando afirmamos que existe um Deus? Queremos dizer que existe somente uma Trindade. O "aparente problema" ocorre somente quando contrabandeamos uma idéia não-cristã de deus para a discussão e tentamos fazer o Deus cristão se encaixar nela.
A idéia cristã de Deus é uma Trindade. Ora, o Pai é Deus, o Filho é Deus e o Espírito é Deus. Contudo, isso não significa que, se Deus é uma Trindade, então devem existir três Trindades, ou que cada uma é apenas um terço da divindade. Isso novamente falha em considerar a doutrina cristã em seus próprios termos. Ilustrarei o que estou dizendo com a relação entre o Filho e o Pai. O Filho é Deus, e Ele refere-se ao Pai como se fosse distinguível do Pai. Mas, então, o próprio Filho diz: "Eu e o Pai somos um". Isto é, Ele pode ser distinguível do Pai, mas não separado dele.
Sem dúvida, se Deus, o Pai, não existisse, então não poderia haver qualquer relação que faria do outro membro Deus, o Filho. Além do mais, se o Pai pudesse perecer, ou a relação entre o Pai e o Filho pudesse ser outra, ou se o Pai e o Filho pudessem discordar, então, antes de tudo isso, não haveria a idéia cristã de Deus. As relações dentro da Trindade são intrínsecas à definição da Deidade. Quando sobre Deus, o Filho é dito que Ele é Deus, é entendido que Deus é uma Trindade e a relação do Filho para com o Pai é implícita, visto que o chamamos de "o Filho". Dessa forma, não dizemos "Deus, Deus, Deus", mas "o Pai, o Filho e o Espírito".
Nunca deveríamos tentar reconciliar o Deus cristão com alguma idéia não-cristã de monoteísmo. Toda idéia de Deus procede de uma cosmovisão. Se ela vem de uma cosmovisão cristã, então já estamos nos referindo a uma Trindade, e todas as outras cosmovisões devem ser rejeitadas por nós, desde já. Mas, se a idéia de Deus procede de uma cosmovisão não-cristã, então é diferente da visão cristã desde o início, e a visão cristã não tem nenhuma obrigação de adotar essa definição alheia em sua autodescrição.
Se a Trindade fosse uma comunidade de três "deuses" no sentido pagão, então seria impossível reconciliar isso com a idéia pagã de monoteísmo, ou uma divindade não trina. Mas, a Trindade é um Deus no sentido cristão, e essa idéia cristã de Deus necessariamente inclui o Pai, o Filho e o Espírito Santo, cujos próprios nomes reconhecem a Trindade e implicam em suas relações.
A Palavra, então, era Deus, ou divindade. Em termos da Trindade, Ele era Deus - o Filho. João começa seu evangelho nos preparando para aprender que Jesus de Nazaré era a encarnação da Palavra, a encarnação da divindade. Como Deus, Jesus possuía todos os atributos da divindade e toda a honra devida à divindade, até mesmo a nossa adoração. Por todo o seu evangelho, João ilustra isso para nós, apresentando episódios ou relatos dos discursos e milagres de Cristo e, por esse meio, também nos mostra as implicações de sua vinda, especialmente no que diz respeito à nossa salvação.
Capítulo 2 do livro The View from Above, disponível em http://www.vincentcheung.com/
1 Deus era, é e será o mesmo, e a natureza divina da Palavra permaneceu a mesma após a encarnação. Se a Palavra era Deus, então ela é Deus. O mesmo deve ser dito com respeito ao Deus homem, Jesus Cristo - Ele era Deus, e Ele é Deus. Contudo, neste contexto, seguimos João ao falar da Palavra no tempo passado. A narrativa do seu evangelho começa desde um tempo antes da encarnação e se refere à Palavra à parte da encarnação, de forma que possamos ter um claro entendimento de quem ou o quê tomou uma natureza humana. O uso do passado, portanto, não nega a realidade da divindade no presente ou no futuro.
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