Por Elvis Brassaroto Aleixo,
Bacharel em Teologia pela FWM e mestre em crítica literária pela UNICAMP
Não é de hoje que a Congregação Cristã no Brasil (daqui em diante CCB) suscita o interesse dos demais cristãos no tocante ao conhecimento de suas doutrinas, práticas litúrgicas e costumes. Reconhecida pela rigorosidade exigida nos trajes de seus membros, pelo exemplar comprometimento com a educação na música sacra e por seus prédios de arquitetura sóbria e requintada, a CCB é alvo de inúmeros questionamentos e debates até mesmo entre os institutos de pesquisas religiosas. A própria classificação da CCB no rol dos movimentos religiosos, segundo as lentes do protestantismo histórico, é controversa. Um levantamento superficial do assunto revela como os especialistas evangélicos oscilam ao classificá-la. Há quem sustente se tratar de uma igreja evangélica genuína, como qualquer outra, sem problemas doutrinários dignos de discussão; mas há quem entenda que a CCB é uma seita ou, no mínimo, um movimento contraditório. Neste artigo (Parte I), propomos analisar, de maneira equilibrada e ao mesmo tempo crítica, esse movimento religioso, com o intuito de esclarecer as várias indagações sobre este assunto que tanto incomoda alguns evangélicos.
Antes de apresentarmos um pouco da história da CCB, julgamos relevante tornar notória a expressividade dessa denominação em termos numéricos, especialmente em nosso país. Há dez anos, a obra norte-americana Pentecostalism Encyclopedia [Enciclopédia do pentecostalismo] apontava a CCB entre as dez maiores denominações do mundo no segmento pentecostal. Entenda-se por "pentecostal" as denominações que salientam a ação do Espírito Santo, especialmente por meio da glossolália, que é o ato de falar em línguas estranhas como fator comprobatório do batismo no Espírito Santo.
Segundo levantamento do ICP (ainda carente de confirmação, mas muito aproximado da realidade), hoje se imagina que cerca de 20% da população brasileira, o que equivale a 38 milhões de pessoas, aproximadamente, exercem fé dentro de algum segmento evangélico, estando os membros da CCB na casa dos 3,5 milhões de adeptos, o que significaria a terceira maior representação evangélica do Brasil, apenas atrás da igreja evangélica Assembléia de Deus e da Igreja Batista. Para se ter uma idéia da dimensão desses números, basta resgatar as informações concedidas pela revista Veja, que atribuiu à CCB um total de quase 4700 templos com um número médio de fiéis freqüentadores na ordem de 403 crentes! Números dessa monta deixam inconteste a relevância da CCB no cenário religioso nacional.
Norte: aproximadamente, 240 mil
Centro-Oeste: cerca de 300 mil
Nordeste: aproximadamente, 350 mil
Sul: aproximadamente, 580 mil
Sudeste: cerca de 2 milhões
A Congregação Cristã possui igrejas nos seguintes países, segundo seu "Relatório Anual de 2010": África do Sul, Alemanha, Angola, Argentina, Bélgica, Bolívia, Brasil, Cabo Verde, Canadá, Chile, China, Colômbia, Costa Rica, Costa do Marfim, El Salvador, Equador, Espanha, Estados Unidos, França, Gana, Grécia, Guatemala, Guiana, Guiana Francesa, Guiné-Bissau, Haiti, Holanda, Honduras, Índia, Inglaterra, Irlanda, Irlanda do Norte, Israel, Itália, Japão, Malawi, México, Moçambique, Nepal, Nicarágua, Nigéria, Nova Zelândia, Panamá, Paraguai, Peru, Portugal, República Democrática do Congo, República do Congo, República Dominicana, Russia, São Tomé e Príncipe, Síria, Suíça, Suriname, Uruguai, Venezuela e Zimbábue.
Quando comparada às outras denominações evangélicas, a cronologia da CCB fica relativamente mais difícil de ser fundamentada em documentos históricos. Isso porque a CCB não tem nenhuma preocupação em resgatar suas raízes e aqueles que o fazem de maneira meticulosa, em geral, acabam sendo excluídos e anatematizados, tal como aconteceu com Marcelo Ferreira, autor do livro Por trás do véu, e Ricardo Adam, que se tornou o principal ícone do Ministério da Reforma da CCB, eclodido em meados de 2006. Nesse mesmo ano, o historicista Leonardo Alves concluiu e publicou a obra intitulada Christian Congregation in North America: Its Inception, Doctrine, and Worship [Congregação Cristão na América do Norte: primórdios, doutrina e adoração], sem sofrer a segregação dos anteriores. Mas, o corpo ministerial brasileiro não enxerga sua obra com bons olhos. Tem-se, freqüentemente, sugerido que essa aversão da CCB à sua própria história encontra razões no fato de a história testemunhar contra o seu exclusivismo atual, visto que seu passado demonstra certa animosidade diante de outras igrejas evangélicas.
Majoritariamente, a fonte das informações que seguem é a obra Histórico de uma ramificação da obra de Deus revelada pelo Espírito Santo no século atual , em que consta um testemunho resumido dos acontecimentos mais relevantes da história da CCB.
1866 - Nasce o fundador da CCB, Luís Francescon, na Comarca de Cavasso Nuovo, província de Udine, Itália, em 29 de março.
1871 - Aos quinze anos, Francescon se muda para a Hungria, onde ganha a vida, até os vinte anos, com a arte de criar mosaicos, um oficio bastante valorizado na época.
1890 - Francescon imigra para os EUA após servir ao exército, estabelecendo-se na cidade de Chicago, Estado de Illinois.
1891 - Francescon se converte a Cristo, aceitando-o como seu salvador por meio da pregação de Miguel Nardi, um evangelista adenominacional.
1892 - Francescon funda, juntamente com os seguidores de Nardi e famílias da Igreja Valdense, a Primeira Igreja Presbiteriana Italiana nos EUA. Na época, Filippo Grilli foi consagrado pastor e Francescon, diácono.
1895 - Francescon recebe uma revelação enquanto lia a Bíblia Sagrada em Colossenses 2.12, que diz: "Sepultados com ele no batismo, nele também ressuscitastes pela fé no poder de Deus, que o ressuscitou dos mortos". No momento da leitura, ouve, por duas vezes, as seguintes palavras: "Tu não obedecestes a este meu mandamento".
1898 - Giuseppe Beretta se converteu a Cristo por meio dos metodistas livres americanos e, depois de algum tempo, uniu-se aos presbiterianos italianos.
1901 - Francescon passa a desempenhar o ministério de ancião da Primeira Igreja Presbiteriana Italiana.
1903 - Francescon convence Giuseppe Beretta a batizá-lo por imersão. Filippo Grilli, pastor da igreja, viaja para a Itália e incumbe Francescon de presidir a reunião de 6 de setembro de 1903, ocasião em que Francescon persuade seus ouvintes da prática do batismo por imersão. No dia seguinte, ele e mais dezoito irmãos da igreja são batizados dessa forma, em Chicago. Com o retorno de Filippo, o grupo é desligado da igreja e estabelece uma comunidade evangélica livre.
1906 - O pastor William H. Durham ouve falar sobre o derramamento do Espírito Santo, que estava ocorrendo na Califórnia, e visita a Missão da Rua Azuza, em Los Angeles.
1907 - Em março, William H. Durham recebe o batismo no Espírito Santo pelo dom de línguas estranhas, acompanhado de uma profecia do pastor J. Seymour, cujo teor dizia que onde Durham pregasse, o Espírito Santo seria derramado sobre o povo.
1907 - No dia 25 de agosto, o próprio Francescon recebe o batismo no Espírito Santo, também seguido de uma profecia. Dessa vez, proferida pelo pastor Durham, que lhe disse que o Senhor o tinha chamado para levar sua mensagem à colônia italiana.
1907 - Em 17 de setembro, surge a primeira comunidade evangélica italiana de fé pentecostal: a Assemblea Cristiana.
1907 - Ainda no final daquele ano, o grupo liderado por Francescon entra em contato com o nascente movimento pentecostal, participando das reuniões realizadas na missão localizada na West North Avenue, 943, cujo pastor era William H. Durham.
1908 - Francescon batiza nas águas cerca de setenta novos irmãos, alguns deles foram milagrosamente libertos de doenças crônicas e incuráveis, entre os quais, um por nome Giácomo Lombardi.
1909 - Francescon e Giacomo Lombardi, iniciador do movimento pentecostal na Itália, partem de Chicago para a cidade de Buenos Aires, na Argentina, onde, em contato com familiares de membros da igreja norte-americana, iniciam o trabalho pentecostal entre a colônia italiana dali.
1910 - Em março, Francescon e Lombardi viajam da Argentina para o Brasil, com destino a São Paulo. Conhecem o italiano Vicenzo Pievani, na Praça da Luz, onde pregam o evangelho.
1910 - Em abril, Lombardi retorna para Buenos Aires e Francescon chega ao Paraná, onde estabelece o primeiro grupo de segmento pentecostal no Brasil. Durante sua estadia, onze pessoas crêem no evangelho e são batizadas em águas e no Espírito Santo.
1910 - Em junho, Francescon retorna a São Paulo e prega os fundamentos do pentecostalismo aos membros da Igreja Presbiteriana do Brás e, também, a alguns membros das seguintes igrejas: Metodista, Batista e Católica Romana, surgindo, então, a primeira Congregação Cristão no Brasil.
1920 - Em São Bernardo, Francescon se encontra com o pastor Gunnar Vingren, missionário sueco que, em conjunto com Daniel Berg, iniciou no Brasil o trabalho da Assembléia de Deus. Segundo testemunhos de Vingren, o encontro entre eles foi bastante fraternal.
1927 - Como desdobramento da Assemblea Cristiana, surge a Igreja Cristã Italiana Inorganizada da América do Norte, idealizada por Francescon, com ênfase em um denominacionalismo ferrenho.
1928 - Ocorre um cisma na Congregação Cristã no Brasil e o grupo, insatisfeito, passa a fazer parte da Assembléia de Deus que, nesse momento, está-se instalando na capital paulista. Devido a isso, até os dias atuais, alguns desinformados acreditam que as igrejas assembléias de Deus foram fundadas por ex-membros da CCB, o que não é um fato.
1932 - Também, como derivação da Assemblea Cristiana, surge a Assembléia de Deus Pentecostal Italiana, fundada por John Santamaría.
1942 - É publicado em São Paulo o livro Histórico de uma ramificação da obra de Deus revelada pelo Espírito Santo no século atual, cujo conteúdo resgata a história da CCB no Brasil, sendo um testemunho escrito pelo próprio Francescon.
1948 - A Igreja Cristã Italiana Inorganizada da América do Norte soma-se à Assembléia de Deus Pentecostal Italiana, atualmente com doutrinas muito semelhantes às das igrejas assembléias de Deus no Brasil.
1964 - Luís Francescon faleceu em 7 de setembro, na cidade de Oak Park, Illinois, EUA.
Em 1927, na cidade de Niagara Falls, Nova York, EUA, houve uma convenção da Congregação Cristã, ocasião em que foram definidos seus doze artigos de fé. Como se perceberá, essa declaração confessional não fere os princípios das igrejas evangélicas pentecostais e, em tese, não justifica as várias controvérsias entre o grupo.
A seguir, os doze princípios de fé da CCB, tais como foram concebidos originalmente:
1. Nós cremos na inteira Bíblia Sagrada e aceitamo-la como infalível Palavra de Deus, inspirada pelo Espírito Santo. A Palavra de Deus é a única e perfeita guia da nossa fé e conduta, e a Ela nada se pode acrescentar ou dela diminuir. É, também, o poder de Deus para salvação de todo aquele que crê (2Pe 1.21; 2Tm 3.16,17; Rm 1.16).
2. Nós cremos que há um só Deus vivente e verdadeiro, eterno e de infinito poder, Criador de todas as coisas, em cuja unidade há três pessoas distintas: o Pai, o Filho e o Espírito Santo (Ef 4.6; Mt 28.19; 1Jo 5.7).
3. Nós cremos que Jesus Cristo, o Filho de Deus, é a Palavra feita carne, havendo assumido uma natureza humana no ventre de Maria virgem, possuindo Ele, por conseguinte, duas naturezas, a divina e a humana; por isso, é chamado verdadeiro Deus e verdadeiro homem, e é o único Salvador, pois sofreu a morte pela culpa de todos os homens (Lc 1.27; Jo 1.14; 1Pe 3.18).
4. Nós cremos na existência pessoal do diabo e de seus anjos, maus espíritos, que, junto a ele, serão punidos no fogo eterno (Mt 25.41).
5. Nós cremos que o novo nascimento e a regeneração só se recebem pela fé em Jesus Cristo, que, pelos nossos pecados, foi entregue e ressuscitou para nossa justificação. Os que estão em Cristo Jesus são novas criaturas. Jesus Cristo, para nós, foi feito por Deus sabedoria, justiça, santificação e redenção (Rm 3.24; 1Co 1.30; 2Co 5.17).
6. Nós cremos no batismo na água, com uma só imersão, em nome de Jesus Cristo (At 2.38) e em nome do Pai, e do Filho, e do Espírito Santo (Mt 28.18,19).
7. Nós cremos no batismo do Espírito Santo, com evidência de novas línguas, conforme o Espírito Santo concede que se fale (At 2.4; 10.45-47; 19.6).
8. Nós cremos na Santa Ceia. Jesus Cristo, na noite em que foi traído, tomando o pão e havendo dado graças, partiu-o e deu-o aos discípulos, dizendo: "Isso é o meu corpo, que por vós é dado; fazei isto em memória de mim". Semelhantemente tomou o cálice, depois da ceia, dizendo: "Este cálice é o Novo Testamento no meu sangue, que é derramado por vós" (Lc 22.19,20; 1Co 11.24,25).
9. Nós cremos na necessidade de nos abster das coisas sacrificadas aos ídolos, do sangue, da carne sufocada e da fornicação, conforme mostrou o Espírito Santo na Assembléia de Jerusalém (At 15.28,29; 16.4; 21.25).
10. Nós cremos que Jesus Cristo tomou sobre si as nossas enfermidades. "Está alguém entre vós doente? Chame os presbíteros da igreja, e orem sobre ele, ungindo-o com azeite em nome do Senhor; e a oração da fé salvará o doente, e o Senhor o levantará; e, se houver cometido pecados, ser-lhe-ão perdoados" (Mt 8.17; Tg 5.14,15).
11. Nós cremos que o mesmo Senhor (antes do milênio) descerá do céu com alarido, com voz de arcanjo e com a trombeta de Deus; e os que morreram em Cristo ressuscitarão primeiro. Depois, nós, os que ficarmos vivos, seremos arrebatados juntamente com eles nas nuvens, para o encontro do Senhor nos ares, e assim estaremos para sempre com o Senhor (1Ts 4.16,17; Ap 20.6).
12. Nós cremos que haverá a ressurreição corporal dos mortos, justos e injustos. Estes irão para o tormento eterno, mas os justos para a vida eterna (At 24.15; Mt 25.46).
Amém!
Esta expressão é um advérbio/interjeição que significa "assim seja", "assim é", "certamente". E poderia ser pronunciada em bom som ao cabo da leitura de cada um desses pontos doutrinários por milhões de evangélicos no Brasil.
Os poucos traços que talvez sofram alguma reserva por parte de alguns cristãos (não a maioria) seriam apenas a fórmula batismal em nome de Jesus e da Trindade e a imersão (em oposição à afusão e à aspersão ), no sexto artigo; o batismo no Espírito Santo, com evidências de novas línguas (glossolália), no sétimo artigo; e o retorno de Jesus antes do milênio (pré-milenismo em oposição ao pós-milenismo e ao amilenismo ), no décimo primeiro artigo.
Os pontos doutrinários da confissão professada pela CCB são ortodoxos e diametralmente diferentes daqueles que encontramos entre as seitas pseudocristãs, como os mórmons ou as testemunhas de Jeová, por exemplo.
Assim, a despeito de algumas práticas de importância secundária, consideramos improcedente classificar a CCB como um movimento sectário, cuja implicação principal seria a ausência de salvação dentro do grupo.
De outra forma, estaríamos condenando ao inferno três milhões e meio de pessoas por causa da observância de alguns costumes e do exclusivismo religioso, o que nos parece algo sem qualquer fundamento.
Além disso, é claro que não podemos reduzir a questão soteriológica a uma simples análise de um credo doutrinário. Existem pessoas sem a salvação em qualquer grupo religioso evangélico, por mais bíblica que seja a confissão desse grupo, pois a salvação exige muito além daquilo que um papel pode aceitar ou daquilo que uma boca pode professar. Sobretudo, não assumimos a arrogante posição laureada de espiritualidade que determina quem vai para o céu e quem vai para o inferno.
Propomos uma analogia entre a CCB e as seitas para contrastar a gritante diferença entre esses grupos. Os movimentos sectários, em geral, têm por características acrescentar ou subtrair algo das Sagradas Escrituras; adulterar a personalidade bíblica de Jesus, do Espírito Santo ou, ainda, negar a Trindade; pregar a salvação por meio de esforços e conseqüentes méritos humanos; além de se considerar o único caminho para a salvação da humanidade.
Como será que a CCB se comporta diante desse quadro?
Essa resposta seria determinante para essa classificação.
Em primeiro lugar, o fato de a CCB rebaixar a Bíblia à categoria de livro de adivinhação não guarda relação direta e causal com o ato de adicionar ou subtrair doutrinas essenciais da fé cristã, embora possa ter esse efeito; antes, está mais relacionado à ausência de conhecimento bíblico.
Se ocorre alguma subtração ou adição da Bíblia entre os membros da CCB, isso não se dá de maneira calculada e manipulativa, como fazem as testemunhas de Jeová com vários versículos bíblicos, ou como fazem os mórmons ao selecionar textos bíblicos que lhes interessam e descartar os demais como fraude. As testemunhas de Jeová possuem as revistas A Sentinela e Despertai, entre muitos outros livros de estudo produzidos pelo Escravo Fiel e Discreto (Corpo Governante da Sociedade Torre de Vigia), aos quais atribuem inspiração semelhante à da Bíblia. Os mórmons, por sua vez, possuem O livro de Mórmon, Pérola de grande valor, Doutrinas e convênios, além dos textos de seus sacerdotes, aos quais atribuem valor superior à Bíblia. Não existe, definitivamente, nada semelhante na Congregação Cristão no Brasil.
Na CCB, qualquer adição ou subtração da Bíblia dá-se por ignorância bíblica, que não deixa de ser algo grave, mas que não se pode comparar ao contexto sectarista, sendo algo que depõe contra seu próprio estatuto, o qual declara: "A Palavra de Deus é a única e perfeita guia da nossa fé e conduta, e a ela nada se pode acrescentar ou dela diminuir" (Artigo 1).
Também, é válido lembrar que a ênfase nas experiências pessoais e nas revelações extrabíblicas não são práticas incomuns no meio evangélico, principalmente entre as denominações pentecostais e neopentecostais. Em quantas igrejas ouvem-se todos os domingos pregadores afirmando: "Assim diz o Senhor", sem que a fonte da mensagem seja realmente divina e inspirada? Embora seja acentuado na CCB, esse não é um problema exclusivo dela.
Em segundo lugar, em relação à identidade de Jesus Cristo, podemos parafrasear o próprio Messias, em Mateus 16.13, nos seguintes termos: "Quem dizem os membros da CCB ser o filho do homem?". E a resposta é primorosa: "Nós cremos que Jesus Cristo, o Filho de Deus, é a Palavra feita carne, havendo assumido uma natureza humana no ventre de Maria virgem, possuindo Ele, por conseguinte, duas naturezas, a divina e a humana; por isso é chamado verdadeiro Deus e verdadeiro homem, e é o único Salvador, pois sofreu a morte pela culpa de todos os homens" (Artigo 3 - grifo do autor).
Observe o leitor que não se trata de um Jesus que não é o Filho de Deus, que não foi gerado pelo Espírito Santo, que foi criado como espírito preexistente, que foi polígamo, casado e irmão de Lúcifer, como difunde o mormonismo. Tampouco, trata-se de um deus inferior, criatura identificada com o arcanjo Miguel, como pregam as testemunhas de Jeová. Seria possível comparar essas concepções errôneas com aquilo que professa a CCB?
A concepção cristológica da CCB não é ebionista (negação da natureza divina), não é docetista (negação da natureza humana), não é ariana (negação da natureza divina), não é nestoriana (negação da união das naturezas humana e divina), não é eutiquiana (negação da diferença entre as naturezas) e não é apolinária (negação do espírito humano de Cristo). Quando lemos o artigo terceiro da profissão de fé da CCB, estamos diante de uma concepção bíblica, ortodoxa.
Ainda dentro da análise relacionada à divindade, a CCB não nega a santíssima Trindade, não é unitarista (o Pai é o Criador, o Filho é criatura e o Espírito Santo é impessoal) ou sabeliana (Pai, Filho e Espírito Santo são a mesma pessoa, mas com atribuições diferentes - modalismo). A CCB não nega os atributos comunicáveis e incomunicáveis de Deus: "Nós cremos que há um só Deus vivente e verdadeiro, eterno e de infinito poder, Criador de todas as coisas, em cuja unidade há três pessoas distintas: o Pai, o Filho e o Espírito Santo" (Artigo 2 - grifo do autor).
Não discutiremos aqui o impasse teológico entre a expiação ilimitada (a morte de Cristo foi suficiente para todas as pessoas, mas eficaz para um número limitado) ou definida e limitada (Cristo não veio para proporcionar salvação a toda a humanidade, mas para tornar certa a salvação dos eleitos); muito menos deixar-nos-íamos perder no embate entre calvinismo (predestinação) e arminianismo (livre-arbítrio).
O que pretendemos, ao salientarmos esse esquivo, é lembrar os leitores que, em alguns pontos doutrinários, existem discussões abertas, mas, nem por isso, podemos rotular os discordantes como hereges. Imagine se fôssemos nos entregar a questões como "depravação total e parcial", "eleição (in)condicional", "graça (ir)resistível", "perseverança dos santos", "decaimento da graça", a nossa abordagem seria sem-fim.
Algumas discussões teológicas são negociáveis, enquanto outras, inegociáveis. E a salvação por meio da fé, pela graça de Deus, é uma delas (Ef 2.8,9), em consonância com o que diz a profissão de fé da CCB: "[Jesus] é chamado verdadeiro Deus e verdadeiro homem e é o único Salvador, pois sofreu a morte pela culpa de todos os homens" (Artigo 3 - grifo do autor) e "o novo nascimento e a regeneração só se recebem pela fé em Jesus Cristo, que, pelos nossos pecados, foi entregue e ressuscitou para nossa justificação" (Artigo 5 - grifo do autor).
Em tese, a CCB não prega a salvação por meio de obras e méritos humanos, embora assuma uma posição controversa em relação ao batismo como sendo um sacramento (o que discutiremos nas próximas edições).
A associação entre as obras e a salvação pela graça é uma questão teoricamente bem definida entre os evangélicos, mas que, às vezes, gera alguma confusão na prática, pois os cristãos, havendo tempo, precisam dar frutos e ter obras para vivificar a sua fé: "Assim também a fé, se não tiver as obras, é morta em si mesma" (Tg 2.7).
Devido a isso, não são poucos, mesmo entre nós, que subestimam o sacrifício de Cristo e, de maneira incutida, acabam deixando subentender uma salvação meritória, dependente da observância de algum ritual ou costume. Isso é algo que precisamos trabalhar em nossas ovelhas e não é peculiaridade exclusiva da CCB.
Talvez, neste ponto, esteja o único fator realmente fundamentado para tentar aproximar a CCB das seitas, que, invariavelmente, reivindicam ser o único veículo de acesso a Deus e de salvação e a única restauração do cristianismo primitivo. As seitas acusam os demais grupos religiosos de apostasia e se apresentam ao mundo como "o caminho estreito" ou "a arca de Noé dos dias atuais".
Esse entendimento, entre alguns membros da CCB, adultera a eclesiologia bíblica, porque esquece que o fundamento da Igreja é Cristo (1Co 3.11, 1Pe 2.4,8) e não uma placa denominacional, além de confundir a igreja local com a Igreja universal.
Uma denominação evangélica possui membros salvos e perdidos; é freqüentada por pessoas vivas (obviamente); pode estar distribuída em muitas localidades; relaciona-se com outras denominações; representa apenas uma parte do Corpo de Cristo; pode possuir diferentes tipos de governos; e ministra as ordenanças. A essa igreja pertencem institucionalmente os membros da CCB, por exemplo.
Diferentemente, a Igreja universal possui apenas membros salvos; é constituída tanto de mortos como de vivos em Cristo; não está restrita a determinada localidade; representa todo o Corpo de Cristo; possui apenas um governo, exercido pela cabeça, identificada como o próprio Cristo; e já cumpriu as ordenanças (Cf. 1Co 11.23-26; Ap 19.9). A esta igreja podem pertencer os membros das igrejas evangélicas de confissão histórica, assim como os pentecostais e neopentecostais.
O historiador francês, Émile Guillaume-Léonard, especialista em história do protestantismo, dá-nos uma pista preciosa que nos ajuda a entender por que a CCB adotou uma postura exclusivista em relação às demais igrejas evangélicas ao longo dos anos. A chave desse distanciamento é a maneira de seus membros empregarem a Bíblia como livro de revelações fortuitas, algo que, muitas vezes, "fundamenta" interpretações bíblicas equivocadas.
Émile assim esclarece o relacionamento entre a maioria dos membros da CCB e a Bíblia: "Os fiéis parecem considerá-la mais um livro de oráculos que se abre para encontrar a resposta do Espírito para uma questão ou uma necessidade do que o relato de uma revelação que deve ser conhecida e meditada sistematicamente. As Escolas Dominicais são substituídas pelo 'cultos para menores', cópia dos cultos comuns, com os três cânticos de início, os testemunhos, as orações (nas quais se manifestam os fenômenos de glossolália), o sermão, novas preces e a bênção final. O conhecimento bíblico que as crianças possuem se reduz, muitas vezes, a um número de passagens ou versículos particularmente comentados. Os próprios guias espirituais declaram, sem embaraço, que não leram toda a Bíblia. Suas prédicas, feitas apenas sob a inspiração do Espírito, sobre textos que lhes são 'dados' naquele momento, não são preparadas. Não possuem livro algum, nem jornal de edificação, nem cultura alguma religiosa, considerando ilegítima toda literatura humana - o que é para eles, aliás, motivo de glória - o mesmo acontecendo com todos os seus fiéis (retificamos: com a maioria). Pode-se dizer que todos os conhecimentos bíblicos mais ou menos sistemáticos que existem nas congregações, provêm de prosélitos recrutados nas denominações protestantes. Felizmente, eles são numerosos, pois certas comunidades evangélicas perdem importantes frações que passam para comunidade vizinha".
Está clara, portanto, a razão de a CCB ser tomada como incômoda por algumas lideranças cristãs, porquanto, não é rara a prática de evangelização que os seus membros promovem entre pessoas que já aceitaram a Cristo e, portanto, já possuem confissão protestante. A falta de compreensão sobre isso é a base do exclusivismo que leva alguns membros da CCB a praticar o proselitismo, neste caso, prática popularmente batizada pelos evangelistas com a expressão "pesca em aquário".
A figura de linguagem explica-se pela analogia: o pescador é o evangelista, que deveria encontrar seus peixes (pessoas não-crentes) nos mares ou nos rios, enfrentando as intempéries ocasionais desses ambientes, usando a isca própria, que é a Palavra de Deus; jamais deveria transformar a denominação alheia num grande aquário, cheio de peixes ornamentais, à espera de uma ração imprópria e fora de hora.
Em detrimento de tudo isso, do ponto de vista das igrejas evangélicas em geral, o fato de um crente mudar de sua denominação para a CCB não o torna um perdido ou anátema. Tanto é assim que, quando o movimento inverso ocorre, quando um crente da CCB se muda para outra denominação (geralmente, pentecostal, por causa da afinidade), seu batismo é reconhecido.
Para encerrar, gostaríamos de destacar que não são todos os crentes da CCB que agem como se os demais evangélicos precisassem de evangelização, como se os membros da CCB fossem mais santos ou os únicos salvos em Cristo. Tivemos a oportunidade de nos relacionar e entrevistar vários membros da CCB e estamos certos de que generalizar o exclusivismo e o proselitismo entre eles seria um defeito de argumentação de nossa parte, pois há exceções. Muitos, inclusive, discordam e combatem essas práticas, o que confirma que as tais não se conformam a um procedimento uniforme e oficial entre eles.
Esperamos que esse artigo ajude a melhorar a compreensão dos leitores de Defesa da Fé quanto ao perfil da Igreja Congregação Cristã no Brasil. E gostaríamos de convidá-los a acompanhar a seqüência de matérias das próximas edições, cujos conteúdos apresentarão os aspectos litúrgicos do culto da CCB; a organização hierárquica de seus ministérios; a ênfase concedida à música sacra; e sua postura em relação à mídia e à política. Após a exposição panorâmica desse perfil, elucidaremos, à luz da Bíblia, as principais peculiaridades dessa denominação, como, por exemplo: a restrição ao estudo da Bíblia; a fórmula batismal e o efeito salvífico desse rito; o uso do véu entre as mulheres; o ósculo santo entre os homens; a fórmula de saudação; a oposição ao dízimos; a motivação para a pregação do evangelho; a restrição de idade para o diaconato; a oração realizada apenas de joelhos; e, por fim, encerraremos a seqüência de publicações com uma abordagem sobre o Ministério de Reforma da Congregação Cristã, o maior indício de que esta igreja está passando por um processo de mudanças considerável.
ANTONIAZZI, Alberto (coord.). Nem anjos nem demônios: interpretações sociológicas do pentecostalismo. Petrópolis: 1994.
BONGIOVANNI, Guy. Pioneers of the Faith. CCNA, 1977.
CONGREGAÇÃO CRISTÃ NO BRASIL. Estatutos. São Paulo, 2004.
CONGREGAÇÃO CRISTÃ NO BRASIL. Relatório anual 2009-10. São Paulo, 2010.
GUILLAUME-LÉONARD , Émile. O protestantismo brasileiro: estudo de eclesiologia e de história social. 2a ed. Rio de Janeiro / São Paulo: JUERP / Aste, 1981.
FRANCESCON, Louis. Faithful Testimony. self-published. Chicago 1948, 1952.
FRANCESCON, Louis. Histórico da obra de Deus revelada pelo Espírito Santo no século atual. 4a ed. São Paulo: Congregação Cristão no Brasil, 1977.
Revista Defesa da Fé (Edição Especial). Rio de Janeiro: ICP, v.1, 2010, p. 61-92.
TOPPI, Francesco. Luigi Francescon. Roma: ADI - Média, 1997.
WOMARKCK, David A.; TOPPI, Francesco. La radici del movimento pentecostale. Roma: ADI - Média,1989.
1 Disponível em:
2 CONGREGAÇÃO CRISTÃ NO BRASIL. Relatório Anual 2009-10. São Paulo, 2010.
3 Atualmente, publicado como Histórico da obra de Deus revelada pelo Espírito Santo no século passado.
4 Hoje, a igreja que ali surgiu foi incorporada pela Igreja Cristã Pentecostal da Argentina.
5 Sobre isso, assim declara Vingren, em suas memórias: "Senti a liberdade do Espírito Santo entre estes crentes, que testificavam, de maneira gloriosa, e falavam em línguas pela operação do Espírito Santo. O irmão Luís Francescon me contou todos os milagres que Deus havia feito, quando enfermos haviam sido curados. Paralíticos, cegos, tuberculosos e aqueles que haviam quebrado pernas e braços o Senhor curara". In: VINGREN, Gunnar, VINGREN, Ivar. O diário do pioneiro. Rio de Janeiro: CPAD, 1973, p. 102.
6 Derramamento. É a prática de jogar água sobre a pessoa empregada por algumas igrejas tradicionais.
7 Borrifamento. É a prática de chuviscar água em gotas sobre a pessoa empregada pela Igreja Católica Romana.
8 É a escola escatológica que defende que Cristo virá pela segunda vez, ao término do Milênio. Muitos pós-milenistas crêem que a era Milenar iniciou-se quando Cristo foi assunto ao céu, e outros crêem que ela surgirá quando o evangelho houver sido pregado em toda terra, promovendo uma Era Áurea de Justiça e Paz para a humanidade.
9 É a escola escatológica que crê que o milênio de Apocalipse 20 deve ser interpretado simbolicamente. Ao contrário do que a Palavra deixa a entender, sendo ausência de milênio, o amilenismo crê num milênio, porém não da forma literal como os pré-tribulacionistas ou os pós-tribulacionistas. De modo geral, o Milênio, na visão amilenista, seria o período da Dispensação da Graça, onde os justos falecidos habitariam com Deus e Satanás teria seu poder limitado, culminando com a volta de Cristo e com o juízo final e único, iniciando a eternidade.
10 GUILLAUME-LÉONARD , Émile. O protestantismo brasileiro: estudo de eclesiologia e de história social. 2a ed. Rio de Janeiro / São Paulo: JUERP / Aste, 1981, p. 350-1.
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