Por Estevan F. Kirschner
Mestre em interpretação bíblica e Ph.D. em Novo Testamento pela London School of Theology, em Londres, Inglaterra
Nos dias de hoje, ainda no início do século 21, há, nitidamente, um declínio de influência do cristianismo na sociedade ocidental e, por extensão, na sociedade brasileira. Algumas razões para esse declínio poderiam ser:
a) Privatização da fé, a partir de um individualismo exacerbado do ser humano moderno que se estende intensamente na assim chamada era pós-moderna.
b) Pluralismo religioso, com grande ênfase no sincretismo religioso e no retorno às religiões mais primitivas (o paganismo).
c) Acanhamento e, muitas vezes, acovardamento do cristianismo diante de diversos desafios do mundo pós-moderno. Como exemplo, podemos mencionar a questão ambiental e o "silêncio quase ensurdecedor" sobre o assunto por parte das igrejas e da teologia;
d) Ostracismo (reclusão) no "gueto" evangélico, com forte tendência à alienação do mundo ("lugar de crente é na igreja").
O protestantismo brasileiro atual deixou de lado uma importante percepção que marcou fortemente a Reforma Protestante do século 16, que via o evangelho e a Palavra de Deus no seu todo, como juiz da sociedade, do mundo e, é claro, da própria Igreja. Mais do que trazer a mensagem de salvação ao mundo, a Igreja, munida do evangelho, também deveria assumir uma postura crítica em relação à sociedade. Para que isso acontecesse, seria necessário haver algum tipo de interação entre a Igreja e a sociedade, o que está se tornando cada vez mais difícil, devido às razões que acabamos de alistar.
Seria muito importante que a Igreja protestante (evangélica) retornasse aos ideais da Reforma, como, por exemplo, ao princípio da sola Scriptura ("somente as Escrituras"), não só na teoria, mas na prática, principalmente. A fim de ilustrar o que seria uma possível proposta bíblica de interação e diálogo entre o evangelho e o mundo que Deus deseja resgatar por meio do seu Filho, Jesus Cristo, tomamos como modelo a atividade missionária de Paulo descrita em Atos 17.
Algumas observações básicas sobre o texto bíblico em referência, serão importantes aqui, especialmente o perfil missionário de Paulo, conforme é apresentado em Atos.
O apóstolo Paulo está em Atenas, centro da arte, da cultura, da filosofia e da religião do mundo greco-romano em meados do século 1o A.D. O ponto de partida para a atuação de Paulo em Atenas (ou seja, da sua atividade na sinagoga, na praça e no Areópago) é uma profunda indignação contra a idolatria reinante naquela cidade (v.16).
Vejamos alguns aspectos desse modelo:
O primeiro aspecto é o contato de Paulo com o ambiente religioso, a sinagoga. Sua estratégia missionária sempre foi visitar, em primeiro lugar, a sinagoga judaica por onde quer que passasse, devido à prioridade do judeu ao evangelho .
Certamente, o apóstolo Paulo se sentia à vontade na sinagoga, o ambiente religioso judaico, onde encontrava judeus, prosélitos e simpatizantes do judaísmo, além da prática litúrgica e piedosa da oração, da leitura e da interpretação da Bíblia hebraica (o Antigo Testamento). No livro de Atos, encontramos um exemplo mais detalhado e, provavelmente, mais representativo da pregação de Paulo em uma sinagoga. Estamos nos referindo ao texto de Atos 13.14-41. Nessa passagem, Paulo faz uma retrospectiva dos pontos principais da história de Israel, concluindo com o lugar central da morte e ressurreição do Messias (Jesus) nessa "história da salvação" proposta por Deus.
Em Atos 17.17, Lucas nos diz que Paulo "discutia" com os judeus na sinagoga. Seu estilo evangelístico não era o monólogo, mas o diálogo. Não era a imposição (unilateral) de idéias, mas a interação, envolvendo um intenso debate com seus ouvintes e interlocutores. Isso é característico de Paulo em Atos, como Lucas apresenta no contexto imediato à passagem sobre Paulo em Atenas.
Quando observamos o treinamento e a formação de pastores nos seminários e faculdades teológicas, notamos que nem sempre se privilegia esse estilo "dialético" de evangelização. Pior ainda, na maioria das vezes, o futuro pastor-teólogo é preparado unicamente para atuar na esfera do "sagrado", do religioso. O teólogo americano Walter Wink fala o seguinte da preparação teológica recebida nos seminários evangélicos (mas, seria diferente no Brasil?) na década de 1980: "uma "incapacidade treinada para lidar com os problemas de pessoas reais em suas vidas diárias".
O problema é que, muitas vezes, pastores e teólogos cumprem mal a sua responsabilidade no âmbito religioso e, além disso, não têm qualquer abertura para os horizontes do lado de fora da "sinagoga". Paulo, porém, sai da sinagoga e chega à praça principal de Atenas (At 17.17). Sua interação, apesar da familiaridade com o ambiente da sinagoga, se estende com naturalidade intrigante para o ambiente do não sagrado, a praça.
Paulo, agora, vai para a ágora, praça principal da cidade. A praça é um lugar movimentado e palco de manifestações, das mais diversas, tanto de caráter religioso pagão como filosófico e cultural. Na praça, Paulo encontra todo tipo de pessoa: trabalhadores e desocupados, marginais e imorais, eruditos e ignorantes - algo bem diferente do ambiente religioso e solene da sinagoga.
A "discussão" do início do versículo 17, na sinagoga, continua regendo a atuação paulina na praça pública. É interessante notar que Paulo não escolhe interlocutor. Não precisa fazer primeiro um curso preparatório ou um seminário para, depois (somente depois!), responder às indagações de quem quer que seja. Pelo contrário. Ele simplesmente debatia "com aqueles que por ali se encontravam".
O assunto não poderia ser mais bombástico: a crítica ao paganismo na cidade de Atenas, incluindo, como é possível imaginar, uma refutação contundente da idolatria, que tanto irritara o apóstolo. Em outra parte do livro, Lucas fornece também uma ilustração da pregação do apóstolo num ambiente predominantemente pagão e idólatra. Em Atos 14.14-18, encontramos um resumo da abordagem paulina sobre os pagãos, na qual ele parte da revelação de Deus na natureza criada para argumentar a necessidade de se atentar para o agir de Deus em Jesus Cristo, as "boas notícias", o evangelho (v.15).
A exposição pública do evangelho em um ambiente profano (comum) requer a coragem de assumir riscos bastante reais. Em primeiro lugar, o risco da rejeição. Paulo é chamado de "tagarela" (grego spermologos, cf. At 17.18), uma alcunha ofensiva. Em segundo, o risco de confusão com ideias alheias ao evangelho de Cristo. Alguns ouvintes, na praça, pensavam que Paulo pregava dois deuses estrangeiros: um tal de Jesus e uma certa anastasis (cf. At 17.18). Anastasis é o substantivo feminino grego para "ressurreição". Como os ouvintes não criam na ressurreição dos mortos, a tendência natural era tomar a palavra como nome próprio que designaria uma divindade feminina. Assim, para a mente confusa de alguns pagãos atenienses, Paulo falava de um estranho casal de divindades, "Jesus e Anastasis".
Mesmo correndo o risco desse tipo de confusão, Paulo nos dá um exemplo dessa difícil, mas necessária, interação do evangelho com o profano, em especial, da persistência em contradizer a idolatria, mesmo com os possíveis mal-entendidos que isso implicava. Em meados do século 20, o teólogo suíço Karl Barth advertia seus estudantes sobre a importância fundamental de se ter a Bíblia em uma das mãos e o jornal do dia na outra, a fim de estarem atentos às possibilidades e à própria necessidade de interação do evangelho com o mundo e a sociedade em que vivemos.
Os protestantes e evangélicos, porém, têm problemas sérios aqui. Em primeiro lugar, há uma nítida falta de atenção ao que acontece no mundo e, até mesmo, ao contexto mais próximo da igreja. No século 16, os adeptos da Reforma de Lutero na Alemanha "protestaram" (palavra de tonalidade claramente política) diante das autoridades imperiais, demandando o direito de exercitarem a fé cristã a partir dos ensinos de Lutero. Daí vem o nome "protestante"; uma designação que, por si só, sugere forte interação com a sociedade, ainda que seja uma postura de não conformismo. Em segundo lugar, é perceptível uma incapacidade generalizada de articulação do evangelho em um ambiente não religioso, a falta de comunicação apropriada. Até mesmo inventamos um novo dialeto: o "evangeliquês". Exigimos que as pessoas de fora aprendam esse dialeto para se relacionarem com Deus - na língua que, supostamente, somente Deus e os crentes entendem. Mas, a encarnação do logos de Deus (Jo 1.14) e a prática missionária paulina demonstram exatamente o oposto disso: Deus vem ao encontro do ser humano, dentro das limitações da "carne", em seu próprio Filho, que revela a divindade com um rosto humano (Jo 1.18).
Na ágora de Atenas (praça principal da cidade), Paulo se torna um incentivo para nós, a fim de que nos esforcemos na promoção e comunicação do evangelho por todos os meios possíveis, inclusive a mídia, sem comprometer, é claro, a integridade da mensagem em troca de comunicação eficaz.
O Areópago (At 17.19), o monte (ou colina) de Marte (Ares), era a sede da academia e do conselho máximo da cidade de Atenas. Ali, seus líderes (as autoridades intelectuais, os educadores e os filósofos de Atenas) se reuniam para deliberar sobre diversas questões civis, filosóficas e religiosas.
Havia dois grupos principais de filósofos em Atenas com os quais Paulo discute no Areópago: os epicureus e os estóicos. Os primeiros eram discípulos de Epicuro e se notabilizaram por promover uma justificativa filosófica para o hedonismo, isto é, a busca pelo prazer como sendo a única razão que dá sentido à existência humana no mundo. Os segundos, por sua vez, eram discípulos de Zenão e se reuniam, originalmente, na porta da cidade. Promoviam a vida de conformidade com a natureza, defendendo um tipo específico de panteísmo (como a alma está no corpo, assim "deus" está na natureza).
O conteúdo do sermão de Paulo no Areópago, resumido por Lucas em Atos 17.22-31, tem alguns pontos salientes dignos de nota no que diz respeito à interação do evangelho com a academia.
Paulo parte de um ponto de contato, o altar "ao deus desconhecido", que a própria idolatria propiciava. Então, o apóstolo aproveita a curiosidade característica dos atenienses (17.19-21) para levar o diálogo adiante. Ele não recorre a alguma forma de obscurantismo diante dos desafios da idolatria. Antes, vai do abstrato e impessoal ("aquilo que vocês adoram", v. 23) para o concreto e pessoal ("o Deus que fez o mundo", v. 24).
Paulo explica que Deus, ao contrário de ser uma abstração, distante e desengajada do mundo, é o Criador e o sustentador de toda a criação (v. 24). Deus está envolvido com o mundo. Além disso, podemos facilmente imaginar Paulo apontando para os grandes templos na Acrópolis, visíveis do Areópago, e dizer que Deus "não habita em santuários feitos por mãos humanas" (v. 24). Ou seja, não é possível "domesticar" o Deus verdadeiro. Ao relatar o que Paulo disse, Lucas nos oferece um ótimo exemplo de "desconstrução" das filosofias pagãs gregas, quando confrontadas com a mensagem do evangelho.
Paulo, ainda, destaca a origem comum do ser humano em Deus (v. 26). Os atenienses criam ser uma "raça" superior até mesmo aos demais habitantes da Grécia. Os estrangeiros eram meramente os bárbaros, os incultos que falavam numa língua incompreensível.
O apóstolo esclarece que a revelação geral, da qual acaba de tratar, ainda que importante, não é suficiente para o conhecimento de Deus: "Talvez, tateando, pudessem encontrá-lo" (v. 27).
Paulo cita, no versículo 28, dois poetas gregos conhecidos, respectivamente: Epimênides ("nele vivemos, nos movemos") e Arato ("somos descendência dele"), para deixar patente que vestígios da verdade de Deus podem ser encontrados na natureza e no próprio ser humano, inclusive na sabedoria helênica.
A desconstrução do paganismo continua no versículo 29, destacando a total "falência" da idolatria e do panteísmo diante desse conhecimento básico de Deus, pois o Senhor não pode ser confundido com aquilo que Ele mesmo criou.
Paulo também alerta que o juízo de Deus (v. 30) estava próximo, que o dia da prestação de contas estava chegando. O juiz, cuja qualificação especial e extraordinária é a "ressurreição dentre os mortos" (prova do agir e da aprovação de Deus), está às portas. Há um detalhe importantíssimo aqui: a ressurreição era rejeitada pelos gregos, por considerá-la absolutamente impossível, e tida como algo absurdo pelos filósofos, os quais sempre tendiam à ideia clássica da imortalidade da alma (Sócrates, Platão).
O diálogo com a academia (filosofia) é difícil, pois será sempre um "diálogo crítico" do evangelho em relação ao pensamento meramente humano. Por essa razão, não é de admirar que os filósofos rejeitassem a mensagem paulina (v. 32). Ainda assim, é importante observar que a pregação de Paulo não foi infrutífera (v. 34), pois alguns poucos creram: Dionísio, membro do conselho da cidade, e Dâmaris.
Contudo, é muito importante ressaltar que Paulo foi alguém especialmente moldado por Deus para esse tipo de diálogo "multidisciplinar", pois ele mesmo era cidadão de três mundos: nasceu em Tarso (cidade helenista), foi criado no judaísmo e era cidadão romano.
Ao final dessas reflexões em torno da atividade missionária de Paulo em Atos 17, é possível formular o esboço de uma tese fundamental sobre as possibilidades de interação e diálogo do evangelho (cristianismo) com o mundo (sociedade) hoje.
Não é só necessário e possível, mas também desejável, que haja um diálogo crítico entre o evangelho de Jesus Cristo e a sociedade, e em todos os níveis. Esse diálogo crítico, de modo algum, invalida, compromete ou diminui a piedade cristã que a Palavra de Deus exprime e requer dos cristãos. Pelo contrário, é até incentivador e motivador da piedade, como se vê na experiência do apóstolo Paulo no livro de Atos. Mas, trata-se de uma piedade qualificada, engajada e relevante para o mundo.
À luz dessas observações em Atos 17.16-34, é preciso destacar algumas coisas que devemos desenvolver, a fim de promovermos o evangelho de maneira mais relevante para o contexto multidisciplinar (sinagoga, praça e academia) em que vivemos hoje. Cito apenas algumas preocupações mais recentes. Precisamos, urgentemente:
Recuperar a capacidade (cristã) de indignação. Paulo reage contra a idolatria crassa de Atenas. Às vezes, parece que estamos anestesiados diante do mundo e do seu panteão. É claro que devemos aprender com Paulo que a nossa reação diante da idolatria não deve ser a de "chutar a santa" ou algo parecido. Embora estivesse muito indignado com a idolatria reinante, o apóstolo usa essa constatação como ponto de contato com os eruditos atenienses e como ponto de partida para sua apresentação do evangelho (v. 22,23).
Desenvolver a capacidade de entendimento crítico do mundo. Precisamos sair do nosso "gueto" e saber como o mundo pensa. Um modo de avaliar até que ponto fazemos isso é perguntar se temos (principalmente, teólogos e líderes) amizades fora do contexto eclesiástico.
Implementar oportunidades de interagir criticamente, a partir do evangelho, com setores da sociedade. É preciso coragem de enfrentar os desafios que o mundo (urbano) moderno e pós-moderno oferece ao cristianismo. Será que o cristianismo não tem algo a dizer (e a fazer) sobre o problema do aquecimento global e das mudanças climáticas? E as artes? Cremos, de fato, que Deus é o Criador daquilo que é belo? Então, por que encontramos tão poucos artistas cristãos? Além do estético, existem numerosos desafios éticos na atualidade brasileira. Raramente, por exemplo, se ouve algum teólogo protestante falando sobre a questão do aborto no Brasil.
O evangelho de Jesus Cristo abre possibilidades variadas de diálogo e interação do cristianismo com o mundo em que vivemos. O apóstolo Paulo é um excelente modelo para nós hoje. Ele demonstra essas possibilidades tanto no campo religioso como no profano e erudito. Em um mundo carente de ideias e ideais, eis a nossa oportunidade de apresentar o cristianismo como algo relevante, que responde às questões mais importantes que preocupam as pessoas no mundo. Tudo isso vem envolvido numa mensagem revolucionária e resgatadora: o evangelho de Jesus Cristo. Estamos dispostos e prontos para assumir essa tarefa?
Artigo publicado originalmente na revista acadêmica Vox Scripturae, vol. XVIII, nº 1.
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