Por Augustus Nicodemus
Mestre em Novo Testamento pela Universidade Reformada de Potchefstroom (África do Sul) e doutor em interpretação bíblica pelo Seminário Teológico de Westminster (EUA)
O termo "fundamentalista" está entre os rótulos mais malcompreendidos e mal-empregados nos meios evangélicos. É o rótulo preferido por alguns para se referir, sempre com viés pejorativo, a quem adere com firmeza a determinadas doutrinas consideradas antigas e ultrapassadas.
Nada mais natural do que procurar esclarecer o significado do termo. Entendemos que a primeira coisa a ser feita é lembrar que o vocábulo "fundamentalista" tem sido usado para diferentes grupos através da história e, também, no presente. Vejamos os mais comuns, segundo o nosso ponto de vista:
O fundamentalista cristão histórico não existe mais. Ele existiu no início do século 20, durante o conflito com o liberalismo teológico que invadiu e tomou várias denominações e seminários nos Estados Unidos. J. G. Machen, John Murray, B. B. Warfield, R. A. Torrey, Campbell Morgan e, mais tarde, Cornelius Van Til e Francis Schaeffer, são exemplos de fundamentalistas históricos.
O fundamentalista cristão americano ainda existe, mas perdeu muito de sua força. Embora tenha surgido ao mesmo tempo em que o fundamentalismo cristão histórico, separou-se dele quando adotou uma escatologia dispensacionalista, aliou-se à agenda republicana dos Estados Unidos e exerceu uma militância belicosa contra tudo que considerasse inimigo da fé cristã. Defendia e praticava o separatismo institucional de tudo e de todos que estivessem ligados, direta ou indiretamente, a esses inimigos. Pouco tempo atrás, faleceu o que pode ter sido o último grande representante desse gênero de fundamentalista, Carl McIntire. Alguns consideram que Pat Robertson é seu sucessor, embora haja muitas diferenças entre eles.
O fundamentalista denominacional é aquele membro de denominações cristãs que se consideram oficialmente fundamentalistas e trazem, até mesmo, o rótulo na designação oficial. Após um período de grande florescimento no Brasil, especialmente no Nordeste e em São Paulo, as igrejas fundamentalistas, presbiteriana e batista, sofreram uma grande diminuição em suas fileiras. Grande parte das igrejas fundamentalistas presbiterianas regressou à Igreja Presbiteriana do Brasil, de onde saíram na década de 50. Em alguns casos, o fundamentalismo denominacional do Brasil foi marcado por laços financeiros e ideológicos com McIntire. Hoje, até onde sabemos, não há mais esse laço. No Brasil, o fundamentalismo denominacional que sobrou desenvolveu, em alguns de seus grupos, uma síndrome de conspiração mundial para o surgimento do reino do anticristo por meio do ocultismo, da tecnologia, da mídia, dos eventos mundiais, das superpotências. Acrescente-se, ainda, o desenvolvimento de uma mentalidade de censura e apego a itens periféricos como se fossem o cerne do evangelho e critério de ortodoxia (por exemplo, só é bíblico e conservador quem usa versões da Bíblia baseadas no Texto Majoritário, quem não assiste aos desenhos da Disney e Harry Potter).
O fundamentalista cristão xiita é sinônimo de intransigência, inflexibilidade, ser dono da verdade e patrulhamento teológico. Essa conotação do termo ganhou popularidade após o avanço e crescimento do fundamentalismo islâmico. Esse tipo tem mais a ver com atitude do que com teologia. Neste caso, é melhor inverter a ordem e chamá-lo de xiita fundamentalista. Na verdade, xiitas podem ser encontrados em qualquer dos campos protestantes. A propalada tolerância dos liberais e neo-ortodoxos é um mito. Há xiitas liberais, neo-ortodoxos e, obviamente, xiitas fundamentalistas. Teoricamente, alguém poderia ser um fundamentalista e ainda não ser um xiita.
Por fim, o fundamentalista cristão teológico, outro sentido em que o termo é muito usado e significa simplesmente ortodoxo ou conservador em sua doutrina. O fundamentalista teológico se considera seguidor teológico dos fundamentalistas históricos e simpatiza com a luta deles. Sem pretender ser exaustivo, acreditamos que podem ser considerados fundamentalistas teológicos atualmente os que aderem aos seguintes conceitos ou parte deles:
Inerrância da Bíblia
Divindade de Cristo
Nascimento virginal de Cristo
Realidade e historicidade dos milagres narrados na Bíblia
Morte de Cristo como propiciatória, isto é, por nossos pecados
Ressurreição física de Cristo dentre os mortos
Retorno público e visível de Cristo a este mundo
Ressurreição dos mortos
Outros pontos associados com o fundamentalismo histórico são: o conceito de verdades teológicas absolutas, o conceito de que Deus se revelou de forma proposicional e a aceitação dos credos e confissões da Igreja cristã.
Numa esfera mais periférica se poderia mencionar que a maioria dos fundamentalistas históricos prefere o método gramático-histórico de interpretação bíblica e tem uma posição conservadora em assuntos como aborto e eutanásia, por exemplo. Muitos, ainda, preferem a pregação expositiva. E todos rejeitam o liberalismo teológico.
Em linhas gerais, o fundamentalista teológico acredita que a verdade revelada por Deus na Bíblia não evolui, não cresce e não muda. Permanece a mesma através do tempo. A nossa compreensão desta verdade pode mudar com o tempo; contudo, essa evolução nunca chega ao ponto radical em que verdades antigas sejam totalmente descartadas e substituídas por novas verdades que, inclusive, contradigam as primeiras.
O fundamentalista teológico reconhece que erros, exageros e absurdos tendem a ser incorporados, através dos séculos, na teologia cristã e que o alvo da Igreja é sempre reformar-se à luz dos fundamentos da fé cristã bíblica, expurgando esses erros e assimilando o que for bom. Admite, também, que existe uma continuidade teológica válida entre o sistema doutrinário exposto na Bíblia e a fé que abraça hoje.
Entendemos que é aqui que está a grande diferença entre o fundamentalista teológico e o liberal. Esse último acredita na evolução da verdade, a ponto de sentir-se comissionado a reinventar a Igreja e o próprio cristianismo.
Na categoria de fundamentalistas teológicos, encontramos presbiterianos, batistas, congregacionais, pentecostais, episcopais e, provavelmente, muitos outros. É claro que nem todos subscrevem todos os pontos acima e ainda outros gostariam de qualificar melhor sua subscrição. Contudo, no geral, entendemos que os fundamentalistas teológicos não fariam feio numa pesquisa de opinião sobre o que creem os evangélicos brasileiros. Por esse motivo, e por achar que o assim chamado fundamentalismo teológico é simplesmente outro nome para a fé cristã histórica, não ficamos envergonhados quando nos rotulam dessa forma, embora prefiramos o termo "reformados".
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