Defesa da Fé: O que o motivou a estudar história, especificamente, história do cristianismo?
Justo Gonzalez: Quando eu era jovem, a matéria que eu mais odiava na escola era história. Eram muitos nomes, muitas datas, muita memória e pouca vida. Mas, depois, quando fiquei um pouquinho mais velho e comecei a estudar teologia, vi livros de bons teólogos e os melhores sempre falavam de seus antecessores, de gente que eu não conhecia. Havia um livro famoso e muito grande, A teologia dogmática de Karl Barth, e quando comecei a lê-lo, cada página tinha 1dez, doze nomes de pessoas que eu não sabia quem eram. Pessoas dos séculos 2o, 4o e 15. Naquela época, eu também estudava filosofia, e logo notei que era impossível estudar filosofia sem estudar história da filosofia. Os cursos de introdução à filosofia sempre começam com a filosofia grega. Da mesma forma, não é possível estudar teologia sem conhecer a história da teologia. Foi isso que me levou a estudar a história do cristianismo. Hoje, interesso-me mais pela história, porque percebo que a história fala da vida dos povos, da vida de homens e mulheres, de quando essas pessoas viviam, as obras que esculpiam. Isso tudo era tão importante para eles como a nossa vida é para nós, hoje. Por isso, não há razão para a história ser algo chato. Muito pelo contrário. Você lê um romance histórico, um romance sobre o rei Carlos V, por exemplo, e fica muito impressionado, porque ali está a história da vida dele.
Defesa da Fé: Existe uma história do cristianismo separada da história geral?
Justo Gonzalez: Existe, mas não deveria existir. Lamentavelmente, a história do cristianismo é escrita com a exclusão da história geral da humanidade. No entanto, penso que isso não é bom dos pontos de vista teológico, metodológico e pedagógico. Não é bom teologicamente, porque o nosso Senhor é o Senhor da história. Toda a história está em suas mãos. É evidente que, na história, há também pecado, mas Jesus é o Senhor da história, e nós aguardamos o fim da história. Logo, não é possível falar da história da humanidade sem falar da história de um Deus que age dentro dessa história. Portanto, não deveriam existir duas histórias. Isso que fazemos nas escolas, de separar a história secular, não deveria existir. Mas, ao mesmo tempo, não é correto, pois a história da Igreja, a vida da Igreja, sempre tem lugar no contexto da vida geral da humanidade. Você não pode falar da Igreja no Brasil sem falar do Brasil. Você não pode falar das mudanças que têm ocorrido na Igreja brasileira nos últimos cinquenta anos, sem falar das mudanças que têm ocorrido na história do Brasil, como país inteiro, nos mesmos cinquenta anos.
Defesa da Fé: Em termos de pensadores da história cristã, quais são as influências mais marcantes em sua história pessoal?
Justo Gonzalez: Ah! São muitas, muitas, muitas. Originalmente, quando eu era mais jovem, as influências mais marcantes foram, principalmente, Martinho Lutero e Agostinho. Depois, Irineu passou a ser mais importante para mim. Ele foi teólogo e bispo na França do final do século 2o. Outra influência foi Karl Barth, um teólogo suíço que protestou veementemente contra o nazismo e, por conta disso, criou uma nova maneira de se fazer teologia no princípio do século 20, o que, por sinal, foi algo que gerou muita discussão. Além desses que citei, há meu pai, minha mãe, minha esposa... todos são teólogos que têm-me influenciado muito.
Defesa da Fé: Em sua opinião, o testemunho da Igreja cristã tem apresentado uma postura coerente em relação à unidade da Igreja de Cristo?
Justo Gonzalez: Coerente sim, mas boa não. É coerente, mas ruim. O testemunho da Igreja tem perdido muito por dois motivos, ambos negativos. O primeiro deles é a divisão constante, segundo a qual cada igreja pensa que fica só no mundo de Deus, que só ela é Igreja. Isso é verdade em igrejas grandes e, também, em igrejas muito pequenas. O problema é o mesmo. Outro problema, outro extremo, é quando a unidade da Igreja se torna algo administrativo, muitas vezes ditatorial, não voluntário. Os dois são problemas, a unidade da Igreja não é apenas unidade: um chefe, um papa, um bispo, um grande pastor. Essa postura faz muito mal ao testemunho cristão.
Defesa da Fé: Para o senhor, quais seriam, hoje, as formas veladas de intolerância religiosa?
Justo Gonzalez: Naturalmente, há intolerância religiosa em todas as religiões, e temos de ter cuidado quando falamos em tolerância religiosa entre os cristãos. Há, também, muita intolerância religiosa entre os muçulmanos, entre os hindus, entre muitas outras religiões. Há muitas e muitas formas de intolerância religiosa. Penso que, em nosso contexto particular na America Latina, possivelmente a forma mais velada é a intolerância de alguns chefes, de alguns pastores de igrejas muito grandes que querem que todo mundo pense exatamente o que eles pensam, ponto por ponto, de A a Z. Fazem tudo isso para manter os fiéis, levando-os a fazer o que eles dizem. Isso é intolerância religiosa também. Intolerância religiosa não é um problema só da Igreja romana. É um problema de todos os cristãos que acreditam ser possuidores da verdade. O cristão não possui a verdade, antes, é a verdade que possui o cristão.
Defesa da Fé: Como o senhor avalia o crescimento do cristianismo na América Latina?
Justo Gonzalez: Há coisas muito boas, e isso eu não preciso falar, porque todo mundo já conhece. Mas, há, também, alguns perigos e problemas: a espuma cresce muito, mas não tem muita sustância, e boa parte do crescimento do protestantismo na América Latina é como uma espuma. Não é a primeira vez que isso é um problema para a Igreja. O mesmo aconteceu no século 4o, o que teve consequências nefastas mais tarde. As pessoas não sabem no que creem. Por esse motivo, precisamos, agora, tomar o tempo necessário para trabalhar o discipulado, o ensino, as doutrinas, a teologia, a vida cristã — sobre a prática da vida cristã, sobre a experiência com a vida cristã e a vida secular e sobre a diferença entre o sucesso cristão e o sucesso como o mundo entende. Precisamos falar mais disso, de modo que as pessoas, que venham às nossas igrejas, tenham, verdadeiramente, sustância nas suas crenças. A falta de sustância é uma das razões pelas quais as pessoas creem em alguém que vem a uma das nossas igrejas com uma doutrina nova ou mesmo um texto bíblico, achando que isso explica tudo. Esse é um problema do crescimento espumoso.
Defesa da Fé: É dito que a América Latina é um “celeiro de missões”. Como o senhor vê essa afirmação?
Justo Gonzalez: Possivelmente, a coisa mais importante que tem acontecido na Igreja cristã em todo o mundo, nos últimos setenta anos, é que os centros do cristianismo têm mudado. Isso não é a primeira vez. No Novo testamento, temos primeiro Jerusalém, depois Antioquia, depois o Mediterrâneo, depois a Europa Ocidental, depois, no século 16, com os espanhóis e os portugueses, e, no século 19, o centro veio a ser o Atlântico Norte. O eixo do cristianismo estava na linha que vai de Londres até Nova York, e era de lá que saíam os missionários. O que tem acontecido nos últimos anos é a mudança do centro. Agora, existem mais cristãos no Sul do que no Norte. Isso não se dá somente na América Latina, mas, também, na África e na Ásia. A Igreja Presbiteriana da Coreia é maior do que sua Igreja-mãe, nos Estados Unidos. Hoje, a ilha de Porto Rico envia mais missionários para Nova York do que a Igreja de Nova York manda para o restante do mundo. A mudança é enorme. A América Latina, que, até a segunda metade do século passado, era receptora das missões, atualmente está enviando obreiros para as missões. Isso é muito interessante, porque, agora, as pessoas que pregam o evangelho em Uganda podem ser inglesas, mas podem ser também brasileiras, argentinas, coreanas. Os obreiros que pregam aqui no Brasil podem ser chineses, coreanos, etc. E as pessoas que pregam na Argentina podem ser uruguaias. Isso é a troca. Troca que é muito maior do que vemos no mapa mundial da Igreja cristã.
Defesa da Fé: Em sua obra, Cristianismo para América Latina, o senhor argumenta que há uma relação mutuamente formadora entre o cristianismo e o contexto latino-americano. Poderia nos falar um pouco sobre essa sua tese?
Justo Gonzalez: Não há dúvida de que o cristianismo tem causado um grande impacto na América Latina. O catolicismo romano, implantado pelos espanhóis e pelos portugueses, está na base da formação religiosa e cultural do continente. Há, também, as influências indígenas e africanas, mas o ingrediente principal é o que vem da Ibéria, o cristianismo ibérico. Mas, o cristianismo que chega à América Latina também se transformou na América Latina, de muitas maneiras. Não somente o cristianismo espanhol e o cristianismo português exerceram influência sobre os indígenas. A religião dos indígenas também influenciou o cristianismo que se desenvolveu. Vejamos, por exemplo, a virgem de Guadalupe. Ela é, originalmente, uma deusa asteca. Há, ainda, os africanos, que são elementos africanos da América Latina e não da África — como os escravos brasileiros que desenvolveram sua religião da África no Brasil. Isso não se dá somente na Igreja Católica, mas, também, nas igrejas protestantes. Tenho amigos antropólogos e sociólogos que fazem comparações entre a maneira como a religião e o culto funcionam nas comunidades originalmente escravas e as formas como funcionam nas novas igrejas pentecostais. Mesmo que não vejamos, em todo o mundo branco há uma influência africana. Agora, especialmente porque a América Latina é um centro de missões, esse cristianismo da América Latina também vai para o resto do mundo. A América Latina aceita o resto do mundo. Hoje, nos Estados Unidos, mais da metade dos católicos romanos é laina. Nas igrejas pentecostais, são entre vinte e trinta por cento. Nas igrejas mais antigas, as chamadas históricas, o crescimento se dá entre os latinos e os coreanos. O cristianismo da América Latina tem ido para todo o mundo.
Defesa da Fé: Como o senhor vê a produção teológica na América Latina?
Justo Gonzalez: Bem, há seus pontos claros e seus problemas. Primeiramente, é preciso pensar na troca que tem acontecido nos últimos cinquenta anos. Todavia, não podemos pensar que a situação presente é a situação de sempre. Vejo coisas muito positivas. Deixe-me contar uma história. Quando eu estava no seminário, o primeiro livro de história da Igreja que estudava era uma obra de 1500 páginas, com letras muito pequenas, em inglês, porque não existia em espanhol. Era um livro que mostrava que, depois da Reforma, o que interessava era a Europa do Norte, os alemães, os ingleses e, depois, os americanos. Então, disse ao meu professor de história que ele deveria fazer um livro de história com o nosso ponto de vista. Ao que ele me disse: “Meu filho, isso jamais acontecerá, porque o mercado latino-americano é muito pequeno, e isso não é possível”.
Hoje, isso mudou diametralmente, o que não deixa de ser uma mudança enorme. Se virmos o que existe e pensarmos tratar-se de um retrato do presente, podemos falar do que falta. Mas, se olharmos o que vem acontecendo nos últimos cinquenta anos, temos muitas razões para ter esperança. Para mim, o que é mais importante é que, teologicamente, a Igreja latino-americana começa a ser ela mesma. E sua teologia tem o mesmo respeito da teologia que vem do estrangeiro. A teologia do estrangeiro é boa, mas não é nossa. É boa no estrangeiro. Mas, é preciso que o povo latino-americano reflita sobre a sua fé e produza uma teologia latino-americana. Isso já acontece, mas, se você vir os hinos musicados, por exemplo, muitos são traduzidos do alemão e poucos são produções espanholas ou portuguesas. Acho que temos muito ainda para percorrer, mas já temos percorrido uma parcela do caminho. Por isso, não devemos ser pessimistas, tampouco podemos ficar contentes, porque ainda há uma grande parte do nosso povo que vê algo, que vem diretamente dos Estados Unidos ou de um programa de televisão norteamericano, como algo vindo diretamente do céu.
Defesa da Fé: De que forma o cristianismo contribuiu e pode vir a contribuir para a história da América Latina?
Justo Gonzalez: O cristianismo contribuiu de várias formas. Como falamos antes, o cristianismo é um dos elementos principais da cultura latino-americana. E não somente no aspecto religioso, mas, também, no aspecto da língua que os cristãos trouxeram. O cristianismo ainda contribuiu com a liberdade religiosa — especialmente o protestantismo — porque o movimento protestante foi um movimento em prol da liberdade. Muitos dos latino-americanos se não eram protestantes eram, pelo menos, simpatizantes dos protestantes. E, depois, quando veio o liberalismo, muitos dos governantes liberais utilizaram a Igreja para promover a educação e a liberdade de pensamento. Isso aconteceu em muitos lugares. Mas, há o lado negativo: existe uma forma de cristianismo que é um dualismo platonista, o qual defende que só o espiritual é bom. Esse tipo de cristianismo tira as pessoas da realidade social e não as permite que façam a contribuição que poderiam fazer.
Penso que o cristianismo pode contribuir muito, mas o grande problema é que as igrejas pensam que sua contribuição é governar, é mandar, é ter poder. Hoje, há deputados e prefeitos. Alguns países têm presidentes evangélicos. Se a Igreja pensa em mandar, acaba fazendo aquilo que o catolicismo romano fez. Mas, se a Igreja entende que tem implicações para a vida total do povo, simplesmente apoia as iniciativas do país que sejam boas.
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