Alderi Souza de Matos é ministro da Igreja Presbiteriana do Brasil e já pastoreou igrejas no oeste do Paraná, em Curitiba e em Cambridge, Estados Unidos. Doutor em Teologia (Th.D.) e em História da Igreja, pela Universidade de Boston (EUA), é auxiliar da Igreja Presbiteriana Ebenézer e professor de História da Igreja no Centro Presbiteriano de Pós-Graduação Andrew Jumper, em São Paulo. Como historiador oficial da Igreja Presbiteriana do Brasil é autor de uma obra que será lançada em breve: Os pioneiros presbiterianos do Brasil (1859-1900) - missionários, pastores e leigos do século 19. Em entrevista à Defesa da Fé, pastor Alderi nos ajuda entender a maior religião do planeta: o cristianismo.
Defesa da Fé – Embora severamente criticada, a religião continua em alta. O que explica esse fenômeno?
Alderi Matos – A religião trata das questões mais profundas da existência: a origem e o destino do ser humano, o significado e o propósito da vida, os valores mais elevados. Em especial, a fé religiosa ajuda as pessoas a se defrontarem com os problemas e perplexidades da vida. Em um mundo cheio de conflitos e incertezas como o atual, é natural que os indivíduos se voltem para a religiosidade em busca de esperança, segurança e direção.
Defesa da Fé – Então, podemos dizer que a fé é algo intrínseco ao homem?
Matos – Historicamente, todos os povos e a grande maioria das pessoas têm manifestado fé religiosa, a crença em realidades transcendentes. Da perspectiva bíblica e teológica, isso se explica pelo entendimento de que Deus criou o ser humano à sua imagem e o dotou de sentimento religioso. É aquilo que o reformador João Calvino denominou sensus divinitatis (“senso da divindade”) ou semen religionis (“semente da religião”).
Defesa da Fé – Sobre essa religiosidade humana, o que mudou e o que permanece inalterado ao longo dos séculos?
Matos – O que mudou é que em contraste com a relativa uniformidade existente durante séculos, o mundo pós-moderno, relativista e pluralista, apresenta um grande número de alternativas religiosas ou místicas. Hoje, é comum as pessoas abraçarem, ao mesmo tempo, diferentes manifestações religiosas. Outra peculiaridade atual é a ênfase no individualismo e no utilitarismo: a religião se tornou mais um meio por meio do qual as pessoas buscam se tornar realizadas, bem-sucedidas e felizes. O que permanece inalterado é o senso da fragilidade da vida humana no cosmos e o sentimento de que existe uma realidade ou ser transcendente que dá sentido à existência.
Defesa da Fé – Quando a religiosidade se torna algo perigoso?
Matos – A religiosidade se torna perigosa quando estimula atitudes, valores e comportamentos nocivos para o indivíduo e para a sociedade. O sectarismo, quando extremado, pode ser altamente intolerante e destrutivo. É o caso de grupos que adotam uma atitude exclusivista e fanática, em que o zelo ou fervor religioso mal-orientado pode levar à intolerância e à violência.
Defesa da Fé – Que exemplos poderiam expressar melhor esse problema?
Matos – Existem muitos exemplos: a intolerância católica medieval, que gerou manifestações como a Inquisição e o anti-semitismo; os grupos protestantes dos Estados Unidos e da África do Sul, que usaram a Bíblia para justificar a escravidão e a segregação racial; seitas apocalípticas, como a de Jim Jones ou a dos Branch Davidians (Waco, Texas); e as muitas manifestações de fanatismo islâmico, que têm alimentado o terrorismo ao redor do mundo.
Defesa da Fé – Sociologicamente falando, por que há tantos problemas de intolerância no mundo islâmico?
Matos – O binômio religião-cultura em estreita associação pode gerar profunda intolerância e repressão contra outros grupos religiosos. Na maior parte da sua história, o cristianismo também experimentou esse tipo de problema. Nos últimos séculos, porém, tem havido maior abertura. Em grande parte do Ocidente não mais se entende que as pessoas precisam ter uma determinada filiação religiosa para que possam exercer plenamente a sua cidadania. Isso foi possibilitado pela separação entre a Igreja e o Estado e o conseqüente surgimento de estados leigos, não-confessionais. O islamismo está longe disso, devido ainda à profunda associação entre religião e sociedade, tendo surgido muitas repúblicas islâmicas, que protegem zelosamente a hegemonia religiosa. Ao contrário do cristianismo, o Islã é essencialmente militante – inclusive nos aspectos político e militar. Isso está expresso no Corão, pelo conceito de jihad (a luta pela fé), um dos cinco pilares da religião muçulmana. Por exemplo, quando um grupo cristão comete violências, a maior parte dos cristãos desaprova e protesta com veemência. No islamismo, apesar de muitos dizerem que a violência não se coaduna com os seus princípios, ouvem-se poucas vozes de protesto contra os ataques terroristas, principalmente da parte dos líderes religiosos.
Defesa da Fé – Qual é a perspectiva de outros povos sobre o mundo Ocidental cristão?
Matos – O poder, a riqueza e a influência do Ocidente, principalmente da Europa e dos Estados Unidos, e a identificação do mesmo com o cristianismo, fazem que outros povos tenham uma visão negativa da religião cristã. No que diz respeito à relação entre muçulmanos e cristãos, o peso da história – antiga e recente – é muito forte. Entre os séculos VII e XI, o agressor foi o islamismo: os exércitos árabes varreram o Oriente Médio, o Norte da África, a Ásia Menor e a Península Ibérica, destruindo ou enfraquecendo o berço do cristianismo. A partir do século XII, com as Cruzadas, a situação se inverteu, gerando animosidades que até hoje envenenam as relações entre as duas religiões e culturas.
Defesa da Fé – De uma religião étnica, fundada por um carpinteiro, para uma fé global. Humanamente falando, como se explica esse sucesso?
Matos – Isso resultou de uma conjunção feliz de fatores, tais como: a personalidade cativante e os ensinos revolucionários de Jesus e a sua atitude sábia de liderança original no sentido de incluir os gentios, transcendendo, assim, os limites estreitos do judaísmo. Some-se a isso a grande receptividade alcançada pela mensagem cristã junto a outros povos, principalmente no que se refere ao seu conceito de salvação e aos valores como o amor, a fraternidade e a igualdade, e a dignidade intrínseca do ser humano. A isso se podem acrescentar vários fatores providenciais como a localização estratégica da Palestina, o uso do idioma grego no Novo Testamento, o zelo missionário dos primeiros cristãos e a atuação de líderes capazes e dinâmicos, como Paulo de Tarso.
Defesa da Fé – Sem querer brincar de adivinhação, como o mundo seria se a fé cristã permanecesse restrita à Palestina?
Matos – O mundo certamente seria mais pobre, tanto espiritualmente quanto em outros aspectos. Na antiguidade, o avanço do cristianismo coincidiu com o progressivo declínio e eventual colapso do Império Romano. No contexto das invasões germânicas, guerras, epidemias e desorganização política e social, a igreja foi o único fator de estabilidade, a única fonte de assistência para as populações afligidas. Nos tempos conturbados da Idade Média, foi a igreja cristã (oriental e ocidental), principalmente por intermédio dos mosteiros, que civilizou, educou e socorreu os povos europeus, bem como preservou o legado cultural da antiguidade. Apesar de todos os seus percalços, o cristianismo legou ao mundo uma história de solidariedade e altruísmo, bem como ideais de liberdade, tolerância e democracia. O cristianismo estimulou o desenvolvimento da educação, das artes e da ciência. Não foi por acaso que o Ocidente se tornou o hemisfério mais próspero. Por outro lado, é um erro histórico considerar o cristianismo uma religião ocidental. Atualmente, alguns dos centros cristãos mais dinâmicos estão fora do Primeiro Mundo, em regiões como o Extremo Oriente, a África do Sul, o Saara e a América Latina.
Defesa da Fé – E como podemos entender o fato de haver tantas divisões no cristianismo, inclusive no próprio protestantismo?
Matos – Essas divisões resultaram em parte da amplitude geográfica e cultural do cristianismo e em parte da complexidade de seu livro sagrado, a Bíblia, com a possibilidade de interpretações divergentes. O cristianismo antigo já era muito diversificado: havia católicos, gnósticos, montanistas, arianos, donatistas e outros grupos. Depois surgiu a grande divisão entre a igreja latina ou ocidental e a igreja grega ou oriental. Na Idade Média, a uniformidade religiosa foi mantida à força, sendo severamente punidas todas as dissidências. Finalmente, o protestantismo, com o princípio do livre exame das Escrituras, contribuiu para o fracionamento da cristandade.
Defesa da Fé – O protestantismo mudou radicalmente a história cristã conhecida até o século XVI. Essa influência ainda continua?
Matos – A influência continua, mas pode assumir formas inesperadas. Na atualidade, as denominações históricas (luteranos, presbiterianos, anglicanos, congregacionais, batistas, metodistas, etc.) são muito menos influentes do que foram no passado, estando propensas a acompanhar certos movimentos e tendências da sociedade secular. O grande fator de revitalização do cristianismo mundial no século XX foi o pentecostalismo, com suas ênfases muito diferentes do protestantismo tradicional. A região de maior expansão do cristianismo no último século foi a África negra, onde, em muitos países, os cristãos se tornaram a grande maioria da população. Todavia, essas novas expressões do cristianismo africano são muito distintas – cultural, litúrgica e teologicamente – do cristianismo ocidental.
Defesa da Fé – E quanto ao catolicismo? O seu declínio continuará acentuado?
Matos – O catolicismo é muito antigo, tendo enfrentado e superado enormes crises no passado (como na época da Reforma Protestante e da Revolução Francesa). Durante o período colonial e o império, o catolicismo brasileiro ficou enfraquecido por causa do regalismo e do regime do padroado. Com a Proclamação da República, houve uma extraordinária renovação católica, ao longo de várias décadas. A crise atual da igreja católica brasileira, com a evasão de grandes levas de fiéis para o protestantismo, está despertando poderosas forças latentes da igreja. Em termos mundiais, o catolicismo continua sendo uma força notável.
Defesa da Fé – Como o senhor avalia esse clima atual em torno da sucessão papal?
Matos – O debate acerca da sucessão de João Paulo II é normal e já ocorreu inúmeras vezes no passado em relação a outros papas, com freqüência em situações de muito maior gravidade e complexidade. João Paulo II vem tendo, sob vários aspectos, um dos pontificados mais bem-sucedidos da história do papado, e um dos mais longos.
Defesa da Fé – Atualmente se celebra até na mídia secular o acelerado crescimento da igreja evangélica brasileira. Um Brasil evangélico será um país melhor?
Matos – Não necessariamente, como já é possível comprovar. As causas para isso são diversas. Primeiramente, há o problema do divisionismo. Não existe apenas uma igreja evangélica brasileira, mas muitas, com diferentes convicções, agendas e prioridades. Se o protestantismo brasileiro fosse mais coeso, certamente teria melhores condições de influenciar positivamente a sociedade. Em segundo lugar, algumas das igrejas mais destacadas se renderam às seduções da sociedade de consumo, com seus valores materialistas e hedonistas. As mensagens que mais se ouvem falam em prosperidade, saúde, sucesso, felicidade no amor e nos negócios, e não em serviço abnegado a Cristo e ao semelhante. Essa rendição aos valores da sociedade pós-moderna individualista e egocêntrica não pode transformar o Brasil.
Defesa da Fé – Algumas lideranças evangélicas já pedem por uma nova reforma. O senhor comunga desse mesmo anseio?
Matos – Uma nova reforma, no sentido de uma renovação e reorientação profunda dos rumos do movimento evangélico no Brasil, certamente seria algo grandemente desejável. O problema é que a possibilidade de que isso aconteça em larga escala é bastante remota. Na Europa do século XVI houve uma conjugação favorável de fatores religiosos, políticos e sociais que propiciaram a Reforma. No mundo atual, mais complexo e pluralista, essa possibilidade se torna mais distante. Se vai ocorrer uma renovação, isso deve começar com a liderança. Quando os líderes deixarem de lado o personalismo, o complexo messiânico, a ambição pelo poder, títulos e posições e se transformarem em servos, trabalhando uns com os outros em busca do bem comum, haverá esperança.
Defesa da Fé – A seu ver, qual é o maior desafio para a igreja cristã para os próximos anos?
Matos – O grande desafio da igreja é ser fiel ao Senhor e ao evangelho, e não aos ditames culturais ou modismos passageiros. A igreja deve falar aos seus contemporâneos, ser sensível às necessidades e realidades da sociedade em que está inserida, evitando, todavia, fazer concessões que descaracterizem a sua natureza, mensagem e missão. Caso contrário, irá cair na irrelevância e será varrida pela maré crescente do materialismo e do relativismo. Uma igreja que se amolda ao mundo pouco poderá fazer em prol do mesmo.
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