Entrevista



Paulo de Souza Oliveira - O racismo, a Bíblia e a Igreja



Por Jamierson Oliveira

Poucas vozes se fazem ouvir no meio evangélico denunciando o racismo e o preconceito racial como a do pastor batista Paulo de Souza. Com pós-graduação em Biofísica e Saúde Pública, mestrado em Ciências Sociais e doutorado em História, é uma das maiores autoridades na defesa dos direitos humanos da população negra. Esse ministério começou com a publicação do folheto “Um negro abençoado na Bíblia” que, posteriormente, transformou-se no livro Os negros da Bíblia e do Brasil. Residindo atualmente em São Paulo, é diretor pedagógico do Seminário Teológico Batista Nacional, de onde concedeu a seguinte entrevista à Defesa da Fé.

Defesa da Fé – Como o racismo chegou ao Brasil e por que ele ainda germina em nossa terra 115 anos após a Abolição da Escravatura?

Paulo de Souza – A escravidão foi um dos fundamentos do Império Agrário do Brasil, e o modelo da nossa economia colonial foi desenhado pela mão-de-obra escrava. A partir do século XVI, os escravos vieram para as Américas em quantidades crescentes, e sempre em condição inferior. Logo após o desembarque dos navios negreiros, seu destino era gastar a vida no trabalho aviltante da mineração e da agricultura. E como bem lembrou a historiadora Maria Luiza Tucci Carneiro no seu trabalho O preconceito racial, a origem do racismo não é científica. O racismo é usado para favorecer os interesses dos que lutam pelo poder e que, de forma desonesta, tentam impedir que o negro ocupe lugares destacados em nosso espaço social.

Defesa da Fé – A miscigenação do povo brasileiro não deveria ter evitado isso?

Souza – Perdemos uma grande oportunidade de tirar proveito positivo da nossa miscigenação, feita à moda brasileira. Segundo a pesquisadora paulista Elza Berqui, enquanto a miscigenação nos Estados Unidos ficou em torno de 4%, no Brasil atingiu 21%.

Defesa da Fé – Qual é o “valor” da dívida que o Brasil tem com a população negra?

Souza – O que seria do comércio interno e externo do Brasil, até 1888, data da Abolição da Escravidão, sem a força de produção dos escravos? Quantos pesadelos de crianças, jovens e velhos a senzala não guardou? E o que dizer do trabalho e afetividade das mulheres negras que criaram as crianças brancas, por gerações, na casa grande dos seus senhores? O valor é incalculável!

Defesa da Fé – O que já foi pago?

Souza – Muito pouco, pelo muito que o negro já fez pelo Brasil. Atualmente, tem havido algum empenho de resgate em determinados setores básicos, com o da educação, por exemplo; a fundação, em São Paulo, da Universidade Zumbi dos Palmares; a cota nos cursos superiores, enfim.

Defesa da Fé – Há muitas outras raças vitimadas pelo racismo. O que torna a causa negra especial?

Souza – Tem havido ocorrências de preconceitos entre os mais diferentes grupos étnicos. No caso dos negros, o colonialismo selvagem, que se abateu sobre um continente inteiro, a África, em um passado não muito distante, vitimando até hoje milhões de famílias, dão maior relevância à causa.

Defesa da Fé – Racistas apontam a pobreza do continente africano como uma evidência da inferioridade dos negros. Como se explica esse subdesenvolvimento?

Souza – Essa pretensa inferioridade do continente africano não tem nenhuma base histórica. Quando o povo de Israel se formou, segundo narrativas bíblicas, a partir de Gênesis 10, algumas nações cuxitas africanas já tinham se destacado por seus feitos e conquistas. As poderosas Babilônia e Assíria foram nações fundadas pelo lendário cuxita Ninrode. O grande império egípcio foi governado pelos faraós Tiraca e Sisaque, da Etiópia. Mais tarde, Alexandria, no Egito, país africano, se tornou o maior centro de estudos e pesquisas do mundo então conhecido. Não muito tempo antes de Jesus nascer, os africanos da Tunísia, com seus generais, como o celebrado guerreiro Aníbal, por pouco não conquistaram o poderoso Império Romano. Chegaram a dominar a Sicília. A parada no progresso dos negros africanos foi posterior, com a colonização, e hoje está em uma situação muito difícil.

Defesa da Fé – Por que o racismo achou guarida até mesmo no seio da igreja cristã?

Souza – Consideramos o racismo mais do que um problema ético do campo da história e da antropologia cultural. É um pecado social e, como tal, com origem na esfera espiritual. Na medida em que a igreja desobedece aos mandamentos de Jesus, ignorando o alcance das lições da koinonia divina, o resultado é, infelizmente, este que estamos discutindo. Mas no início do cristianismo havia fraternidade entre os negros e não-negros. Prova disso é que um dos mestres e profetas da igreja era Simeão, o Níger, isto é, negro em latim.

Defesa da Fé – As restrições da lei de Moisés quanto ao casamento misto não ajudou também a se construir uma teologia racista?

Souza – Essa foi uma questão de falsa interpretação bíblica. O objetivo da legislação mosaica para o povo judeu visava impedir a contaminação de sua fé, uma vez que seus vizinhos tinham uma adoração politeísta, paganizada. Algo semelhante à advertência para a Igreja sobre o perigo de ela se deixar submeter a um jugo desigual com pessoas mundanas.

Defesa da Fé – Mas a escravidão era uma realidade entre os povos bíblicos.

Souza – Historicamente, desde a antiguidade, infelizmente, houve a prática da escravidão. Só que a motivação não era propriamente étnica. As razões que determinavam a perda da liberdade eram: captura, compra, nascimento, restituição, dívidas, autovenda, rapto ou militar, quando os povos vencidos nas guerras eram escravizados. O fator determinante não era a cor da pele, como veio acontecer depois.

Defesa da Fé – Então, como se desenvolveu essa “teologia racista”, baseada em quê?

Souza – Como chegamos a mencionar em nosso livro, Os negros da Bíblia e os do Brasil, grande parte deste fato deve ser creditado à ganância das reações européias que lotearam, entre si, os recursos minerais e econômicos da África. Para isso, foi montada uma operação teológica herética para desqualificar as populações africanas. Partes da Bíblia eram cuidadosamente destacadas, tais como: Gn 4.8-16; Gn 9.20-25; Ct 1.5,6; 1Co 12.13 etc, sobre as quais desenvolveu-se a doutrina poligenista, que advoga o surgimento de cais diferentes. Ensinavam que negros e asiáticos não descendiam de Adão e Eva, chocando-se frontalmente com o que diz a Bíblia em Atos 17.26: “De um só sangue fez toda a geração dos homens”.

Defesa da Fé – A passagem bíblica sobre o sinal de Caim foi a base dessa “operação”?

Souza – Ela fez parte da construção teológica racista. Mas não há nada na Bíblia que justifique ou ensine que o sinal de Caim foi a cor da pele. E mais, o objetivo divino foi a proteção de Caim, apesar do seu grande erro, e não a sua desgraça, conforme Gênesis 4.

Defesa da Fé – Os negros têm um papel relevante na história bíblica. Ninrode, o poderoso líder de Babel, Simão, o cirineu, que ajudou Jesus a carregar a cruz, e Lúcio, líder da igreja de Antioquia, eram negros!

Souza – É verdade. A lista é bem maior. Mas quem ensina e divulga estas coisas? Seria bom que a igreja brasileira pensasse. A quem interessa essa omissão?

Defesa da Fé – Qual tem sido a contribuição negra à teologia e à história cristã?

Souza – Graças a Deus, o cristianismo atual deve muito aos cristãos africanos. Só que muita gente não sabe disso. Os chamados “Pais da igreja” pertenceram à igreja africana, com destaque para as comunidades cristãs antigas do Egito, da Etiópia e do norte da África, de um modo geral. Entre esses gigantes estão Orígenes, Atanásio, Cirilo, Tertuliano, Frumêncio e o notável mestre Agostinho.

Defesa da Fé – A Bíblia reserva promessas especiais aos povos negros?

Souza – Evidentemente que os povos negros estão incluídos na grande festa indicada em Apocalipse 7.9, quando povos de todas as raças, tribos e nações estarão aclamando ao Senhor Jesus Cristo. Todavia, mais especificamente, o Salmo 68 faz referência ao Egito e à Etiópia como nações camitas (negras) que, no futuro escatológico, serão parceiras de Israel na adoração ao Senhor. O texto diz: “...a Etiópia cedo estenderá para Deus as suas mãos”. Outra grande demonstração do amor de Deus aos negros foi registrada pelo profeta Amós: “Não me sois, vós, ó filhos de Israel, como os filhos dos etíopes?”. O carinho que Deus dispensava aos judeus era semelhante ao que devotava aos negros!

Defesa da Fé – Houve algum esforço missionário entre os negros escravos no Brasil?

Souza – Pouco se tem falado, mas o historiador batista José dos Reis Pereira registrou o fato. Estávamos no Império, a escravidão ainda existia. A convenção Batista Americana deslocou um de seus missionários da África, Nigéria, para pregar no Rio de Janeiro, onde se identificou com os negros cariocas, falando com eles em Ioruba. Esse servo de Deus iniciou seu trabalho em 1860, nos morros cariocas, porque ali já estavam amontoados os negros. Pena que teve de regressar, por motivos sérios de saúde, à América. Outras tentativas isoladas, de menor significação, aconteceram entre os metodistas.

Defesa da Fé – E a igreja evangélica atual, que realidade está vivendo em relação a estas questões?

Souza – A visão de boa parte da atual igreja cristã é deficiente, seletiva. Não cremos que a Igreja ainda, como um todo, tenha uma verdadeira compaixão e lute, com todas as suas armas, pela salvação e igualdade de todos os povos. Basta a gente pensar sobre a omissão de alguns sobre o desafio da “Janela 10/40”. Não é verdade?

Defesa da Fé – Repetindo a célebre frase de Martin Luther King “Eu tenho um sonho”, qual seria suas aspirações?

Souza – Na esteira do grande batalhador que foi o pastor Luther King, e juntos com outros segmentos da igreja, esperamos que haja igualdade de oportunidades para todos, nas dimensões secular e espiritual. Martin Luther King, no balanço dos 358 dias da campanha que realizou na cidade americana de Montgomery (EUA), declarou: “Tenho a firme convicção de que Deus colocou sua mão sobre Montgomery. Que todos os homens de boa vontade, brancos e negros, prossigam trabalhando com Ele”. É este também o nosso desejo para o Brasil.

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