Bacharel em grego, hebraico e português pela Universidade de São Paulo (USP), o professor Vicente de Paula dos Santos é hoje um dos maiores especialistas das línguas originais da Bíblia. Membro da Igreja Batista em Jardim Dracena, SP, leciona em várias instituições de ensino em São Paulo e capital: Seminário Batista Centralense, Faculdade Teológica Batista Paulistana (Osasco), Faculdade Teológica Paulistana Santo Amaro e Seminário Teológico Servo de Cristo na América do Sul.
Do alto dos seus 18 anos de experiência como professor de grego, hebraico e teologia, ele acredita que o conhecimento dos originais bíblicos é o princípio básico para se obter uma boa exegese e hermenêutica, pois somente assim o estudante da Bíblia poderá entender perfeitamente a raiz daquilo que foi escrito. Para ele, o bom teólogo é aquele que possui humildade, pois “a nossa natureza está limitada a não compreender absolutamente a complexidade do real”, afirma na entrevista que segue, onde também discorre sobre teologia liberal e conservadora, entre outras coisas.
Defesa da Fé - De que forma o estudo do grego e hebraico ajuda-nos a entender as doutrinas bíblicas?
Vicente de Paula - Acredito que o estudo do grego, hebraico e aramaico seja fundamental para esse propósito, porquanto determinadas idéias só podem ser mais adequadamente captadas na língua original em que foram escritas. Uma base essencial para a doutrina de Cristo encontra-se em Filipenses, conhecida tecnicamente como Carmen Christi ou “poema de Cristo”. Por melhor que seja a intenção do tradutor, jamais poderá transmitir os conceitos teológicos como Paulo fez em língua grega. Outro exemplo está presente em Atos: “Ora, estes de Beréia eram mais nobres que os de Tessalônica; pois receberam a palavra com toda a avidez, examinando as Escrituras todos os dias para ver se as coisas eram, de fato, assim”. Segundo o texto grego, não há base para depreciar-se os tessalonicenses em função dos bereanos. Se a depreciação fosse possível, como então explicar o elogio que Paulo faz aos tessalonicenses. Poucas traduções evitam essa inadequação, tais como, a Nova Versão Internacional Francesa e a tradução italiana de Giovanni Diodati.
Defesa da Fé - Em que consiste uma boa exegese e hermenêutica da Bíblia, para aqueles que não possuem formação das línguas originais?
Vicente de Paula - Sinceramente, não acredito em boa exegese ou hermenêutica sem o conhecimento das línguas originais da Bíblia. O que fazer, então? Situação complexa... Torna-se, com efeito, necessário o incentivo ao estudo das línguas originais da Palavra de Deus ou estaremos nos iludindo com a possibilidade de nos aprofundar na superfície das abordagens de cunho essencialmente relativo.
Defesa da Fé - Por que há tanto descrédito no meio acadêmico quanto à veracidade da Bíblia e de seus personagens e acredita-se com muito mais facilidade nas obras de filósofos gregos que não dispõem de tantas provas documentais?
Vicente de Paula - O critério da historiografia depende fundamentalmente de uma visão profunda alicerçada na ilusão da possibilidade de se reconstituir o passado. Do ponto de vista confessional, torna-se problemático o esforço para se “provar a veracidade da Bíblia” para um acadêmico, uma vez que a ilusão da possibilidade de se reconstituir o passado, quando aplicada à Bíblia, faz menos sentido para ele do que quando aplicada à historicidade de Platão, Sócrates, Demócrito, Aristófanes etc. Parece-me ingênua a tentativa de acreditar na possibilidade de “demonstrar” para o meio acadêmico que a insuficiência de suas provas documentais possam ser um argumento contra ele.
Defesa da Fé - Como professor universitário e teólogo, como o senhor avalia o nível acadêmico dos cursos teológicos que temos no Brasil?
Vicente de Paula - Como professor e observador dos cursos teológicos no Brasil, sinto-me profundamente descontente, pois a ênfase nos cursos é somente para "formatação" de pastores, ministros, missionários, ministros de louvor etc. Não há espaço para formação de “pessoas”, em quaisquer que sejam seus ministérios, interessadas em refletir teologicamente.
Defesa da Fé - O que o senhor entende por teólogo liberal e conservador?
Vicente de Paula - Em primeiro lugar, não me parece sensato subestimar um teólogo somente por ele ser liberal, nem estimar outro teólogo somente por ele ser conservador.Teólogo liberal é aquele que, influenciado pelas tendências provenientes do Iluminismo, passa a considerar os objetos teológicos segundo critérios distintos daqueles do teólogo conservador. O teólogo conservador crê que a Bíblia é a Palavra de
Deus, apesar da incredulidade dos seus opositores para aceitar esse dogma.
Consideremos, brevemente, Friedrich Schleiermacher, o fundador da teologia liberal, nascido em 1766. Schleiermacher acreditava que a Bíblia deveria ser encarada como sendo registros da experiência religiosa do homem, não o registro dos feitos divinos no processo histórico da humanidade. Devemos ter em mente que o método adotado por Schleiermacher era evidentemente influenciado pelo "Espírito do Tempo” do Iluminismo: o Historicismo, o Cientificismo, o Ceticismo, o Racionalismo, o Toleracionismo e o Otimismo.
Seria razoavelmente lógico esperarmos que algumas idéias, reflexões ou conclusões em Schleiermacher fossem estranhas e conflitantes para a teologia ortodoxa, na medida em que as conjeturas da teologia ortodoxa não se coadunavam com os critérios iluministas. Albrecht Ritschl, outro teólogo liberal, nascido em 1822, considerava a abordagem de Schleiermacher extremamente alicerçada em referenciais subjetivos e místicos.Um aspecto interessante em Ritschl é a ênfase que ele dava à comunhão, afirmando a impossibilidade de um indivíduo ter fé e não estar inserido num grupo.
Adolf Von Harnack, também teólogo liberal, nascido em 1851, o historiador do Dogma, procurou adotar o método do ceticismo histórico para considerar a "historicidade" de Jesus. Há uma certa ingenuidade de recepção no liberalismo teológico quando analisamos sua adesão metodológica sedimentada em premissas otimistas em relação ao "avanço científico". Não quero dizer com isto que a teologia ortodoxa esteja isenta de problemas. Acho mais sensato, porém, abordar criticamente os critérios metodológicos de um determinado período histórico e seu "Espírito do Tempo" do que aderir ingenuamente aos cânones da "ciência". Em minha opinião, não seria sábio "censurar" a teologia liberal. Seria mais prudente "analisá-la”, pois não nos esqueçamos de que os fariseus julgavam-se mais ortodoxos que os saduceus. As críticas mais severas de Jesus, porém, foram dirigidas aos fariseus.
Defesa da fé - A nossa teologia ainda hoje sofre com o “estrangeirismo” ou o impacto de teólogos americanos e europeus já é bem menor na formação de nossos seminaristas?
Vicente de Paula - Acredito que o "caminho da teologia americana ou européia " ainda seja uma característica marcante na formação de nossos seminaristas. Infelizmente, muitos seminaristas nem desconfiam desta triste realidade. Espero que os estudantes de teologia, a partir de uma essencial conscientização reflexiva, procurem se libertar das algemas da etnia que os aprisionam e sejam livremente pensadores teológicos. A audácia, de um certo modo, faz-se então necessária.
Defesa da fé - Qual seria o melhor caminho a seguir para ser um bom teólogo e produzir estudos bíblicos a partir da nossa realidade cultural brasileira e contexto latino-americano?
Vicente de Paula - Parece-me que o melhor caminho a seguir nesse sentido seria não tentarmos produzir o “caminho da teologia latina ou brasileira”, pois estaríamos construindo um sistema que poderá, sob um determinado aspecto, servir de base para uma delimitação étnica também. Se criticamos a "norteamericanização” ou a "europeização” da teologia, por que , então, a "brasileiração" ou a "latinização"da teologia? A teologia, enquanto conceito específico, é, por natureza, meta-étnica. Assim, qualquer esforço para limitá-la ou delimitá-la em referenciais étnicos caracteriza, teleologicamente falando, uma perversão essencial.
Quanto ao fato de ser um bom teólogo, parece-me que a humildade é uma das características mais recomendadas, pois a nossa natureza está limitada a não compreender absolutamente a complexidade do real. A nossa felicidade para tentarmos entender parcialmente a complexidade do real consiste no reconhecimento, sereno e humilde, de nossa limitação diante do Criador desta extraordinária complexidade. Os objetos teológicos, de modo singular, servem, também humildemente, como critério ou índice de moderação, o que é essencial para o teólogo razoável.
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