"Vede, não desprezeis alguns destes pequeninos, porque eu vos digo que os seus anjos nos céus sempre veem a face de meu Pai que está no céus" (Mt 18.10)
A fim de termos uma boa compreensão do assunto, comecemos lendo todo o trecho que enseja essa dúvida. Vejamos:
"Naquele momento, os discípulos chegaram a Jesus e perguntaram: Quem é o maior no reino dos céus? Chamando uma criança, colocou-a no meio deles e disse: Eu asseguro que, a não ser que vocês se convertam e se tornem como crianças, jamais entrarão no reino dos céus. Portanto, quem se faz humilde como esta criança, este é o maior no reino dos céus. Quem recebe uma destas crianças em meu nome, está me recebendo. Mas, se alguém fizer cair no pecado um destes pequeninos que creem em mim, melhor lhe seria amarrar uma pedra de moinho no pescoço e se afogar nas profundezas do mar [...] Cuidado para não desprezarem um só destes pequeninos! Pois eu digo que os anjos deles nos céus estão sempre vendo a face de meu Pai celeste" (Mt 18.1-10).
Em certa ocasião, desejando dar aos discípulos uma lição sobre humildade (Mt 18.1), o Senhor Jesus chamou uma criança para perto de si (v. 2) e ensinou aos discípulos a necessidade de alguém se tornar como uma delas para entrar no reino (v. 3,4). Receber uma criança no nome do Senhor significa receber o próprio Senhor (v. 5). Em seguida, o Senhor falou do castigo dos que colocam tropeços diante dos "pequeninos" que creem nele (v. 6-9) e advertiu os discípulos a que não os desprezassem, diante do cuidado vigilante de Deus por eles, por intermédio dos anjos (v. 10).
Essa dito é difícil porque sugere a existência de "anjos da guarda" de crianças, que estariam constantemente na presença de Deus, velando e cuidando dos pequeninos. O conceito de que cada crente tem um anjo da guarda enviado por Deus sempre foi popular entre os cristãos, e tem-se tornado ainda mais popular com a crescente onda de fascínio pelos anjos que tem invadido as igrejas evangélicas, acompanhando o aumento do misticismo e do ocultismo no mundo.
Há várias interpretações para este dito difícil de Jesus.
De acordo com este entendimento, Jesus ensinou que a alma das crianças (ou seja, o "anjo" de cada uma delas) vai para o céu após a morte das crianças, e essa alma ou anjo fica continuamente na presença de Deus. De acordo com esta interpretação, Jesus mandou que os discípulos não desprezassem as crianças, pois elas, quando morrem, vão, na forma de anjos, morar na presença de Deus. Alegam que Jesus se referiu aos "seus anjos no céu", indicando que isso esteja afirmando o que acontece após a morte. A dificuldade óbvia com esta interpretação é que identifica alma com anjo, como se fossem a mesma coisa, uma associação impossível à luz do Novo Testamento. A alma faz parte da personalidade humana, enquanto um anjo é um ser distinto do homem. As pessoas não se transformam em anjos quando morrem, conforme a crendice popular, mas suas almas comparecem, como almas, à presença de Deus.
Outra interpretação entende que a expressão "seus anjos" se refere aos anjos destacados por Deus para guardar cada criança, e que, neste trabalho, eles (os anjos) ficam subindo constantemente ao céu, na presença de Deus, para dar relatórios de suas atividades e interceder em favor das crianças. Essa doutrina é defendida pela Igreja Católica, que diz que, no batismo, cada criança recebe seu anjo da guarda, que é enviado por Deus para protegê-la e aconselhá-la por toda a sua vida. Esse anjo é, também, chamado, na teologia católica, de "anjo custódio".
Há várias passagens bíblicas usadas para defender esta interpretação. "O anjo do Senhor acampa-se ao redor dos que o temem e os livra" (Sl 34.7) é uma das mais conhecidas. Também Gênesis 48.16, em que Jacó se refere a um anjo que o teria livrado de todo o mal (na verdade, refere-se ao anjo do Senhor). Menciona-se também o anjo que veio em socorro de Daniel (Dn 6.22).
Essas e outras passagens, entretanto, não provam o ponto, apenas mostram que Deus envia anjos para proteger e salvar seus servos em determinados momentos. A ideia de "anjo da guarda" para cada criança é bastante estranha à luz da doutrina bíblica, muito embora esteja claro que uma das funções dos anjos é proteger os filhos de Deus. Nenhuma das passagens geralmente usadas para provar a existência de "anjo da guarda" realmente prova coisa alguma. Ao final, existe muita influência da crendice e da superstição popular sobre o assunto.
A outra interpretação defende que a chave para entendermos este dito difícil de Jesus é o termo "pequeninos". A quem Jesus se refere? O termo pode ser tomado literalmente como se referindo às crianças, como as duas interpretações anteriores o fazem, ou figuradamente, como se referindo aos discípulos de Jesus. Esta última possibilidade resolve o problema e tem apoio bíblico.
Em primeiro lugar, Jesus usa, regularmente, o termo "pequeninos" para se referir aos discípulos (Mt 10.42; 18.6; Mc 9.42; Lc 17.2). Notemos que, nos versos 1 a 5, Jesus se referiu, claramente, às "crianças". Já nos versos 6 a 10, Jesus menciona os "pequeninos". Em segundo, os discípulos são comparados com crianças, no que diz respeito à confiança em Deus. E, em terceiro, a passagem se encaixa no ensino geral do Novo Testamento sobre o ministério dos anjos em favor dos filhos de Deus, como, por exemplo, Hebreus 1.14.
Portanto, a melhor explicação para esta passagem é que Jesus está ensinando que Deus envia seus anjos para assistir aos "pequeninos", que são os seus discípulos, os filhos de Deus pela fé, comparados a crianças. Assim, não devemos desprezar esses "pequeninos". Afinal, esse ministério angelical para com os "pequeninos" faz parte do cuidado geral que os anjos desempenham em favor do povo de Deus (Sl 91.11; Hb 1.14; Lc 16.22).
A passagem não está ensinando que cada crente ou criança tem seu próprio "anjo da guarda", como era crido popularmente entre os judeus na época da Igreja primitiva.
Simplesmente, o texto em estudo expressa o cuidado geral de Deus por seu povo pela instrumentalidade dos anjos.
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